2009-12-24

foto&legenda # 450 (anjos aí)

Temos que aproveitar e explorar as oportunidades de negócio. Onde é que encontramos anjos?, na américa, não é? Pois agora, a troco de um montante módico, qualquer pessoa pode ser anjo. Pode escolher o tipo de plumas - temos vários tipos, desde o mais convencional até ao mais exótico -, também pode escolher a envergadura das asas e a forma de recolhimento pode ser mais discreta ou mais petulante. Já não há motivo para quem quer que seja e que queira ser não seja anjo. Vontade e um montante módico é quanto basta. O resto é por nossa conta. Temos catálogo para consulta e, claro, o nosso produto tem certificado de garantia, contra defeito de fabrico ou de montagem, válido por vinte e quatro meses. Tendo em conta que os anjos têm uma esperança de vida equivalente à duração de um contrato de trabalho com termo certo, diz-nos a experiência que vinte e quatro meses de garantia chegam e sobram. Não, a inflacção não interessa. O desemprego também não. Fixe-se nesta expressão, preço módico. Preço módico. É de campanha de natal. Não, nós não fazemos saldos. Fazemos campanhas. A próxima só na páscoa. Nessa altura contamos ter a gama dos nossos produtos melhorada e alargada. Também teremos cepos. E cavilhas de níquel, tipo prego de solho. Para o efeito que é, é suficiente. Não, a manjedoura é um produto de época, só temos agora. Passada a quadra, deixamos de ter, só voltamos a ter no ano que vem. Sim, sim, é para o produto não se deteriorar. Fardos de palha?, isso temos durante o ano todo. Também temos em cápsula, temos, sim senhor. Sim, sim, tem razão. Não podemos ser todos anjos. As cápsulas?, há de vários sabores. É uma questão de paladar. Gostos não se discutem. Não podemos ser todos anjos, mas quase todos podemos ser. Temos um sistema de pagamento adequado a cada caso, em prestações suaves, caso seja necessário. Preço módico, prestações suaves, como as plumas. E ecológico.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2009-12-16

foto&legenda # 449 (exit)

As tuas costas são um sinal. Vejo sete torres, sete sinos, e apenas uma saída. Eu fico, sou o atraso.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2009-12-08

foto&legenda # 453 (københavn, etapa do apocalipse)

Num lugar dizem a esperança. É autenticamente a ilusão de que continua a haver princípios, de que a função reset está disponível para o mundo. Não está. A revolução é inevitavelmente para o mesmo. Somos filhos de Δαίδαλος, ainda não aprendemos a cair sem fim, apenas caímos, sem hipótese de recomeçar, continuamos a cair. A continuação assim é a série que corresponde ao desespero, é o processo que suscita e transporta a consciência de que a morte não resolve o mal sem cura de que padecemos como comunidade e cada um de nós padece também. A impossibilidade da morte como solução é uma doença mortal, é a condenação à falência. Falha a fé, falha a dialéctica, falha o retorno eterno, falham as modalidades de habitação do parque humano, do absoluto que o habita. Agora, que dura a cerca de meia hora de silêncio após a quebra do sétimo selo, resta o fim. Como não somos capazes de sair do tempo, ainda imaginamos moinhos, inventamos relógios gigantes com três ponteiros para combater o atraso. Mas o atraso é já demasiado. Nas fontes, nos rios e nos mares haverá absinto. Nos chãos haverá apenas areia, cinza ou sal. No ar haverá fumo negro e perfume de enxofre. Ninguém existirá para continuar a imaginar moinhos. Esquecidos todos os hinos, esquecidas todas as orações e todas as intenções, sobreviver-nos-á o ocaso.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2009-12-01

foto&legenda # 452 (zero a zero)

Isto é a sério. Se alguém é adepto de Rui Santos, essa espécie de prof. Marcelo da bola, que esqueça e siga, isto não é uma petição para refinados. O futebol é um jogo. Confrontam-se duas equipas, sob regras determinadas e simples. Os objectivos de cada equipa são claros, não sofrer golos na baliza a defender e marcar golos na baliza a atacar. No confronto entre as equipas, são objectivos mútuos e contrários. Da conjugação de tais objectivos podem resultar cenários distintos. No estádio actual de desenvolvimento do jogo, importa destacar três, no sentido em que os restantes são variantes de um deles. Um desses cenários – instituído como propósito maior do jogo – é a vitória de uma equipa (e a consequente derrota da outra), decorrente do facto de ter conseguido marcar mais golos (do que a outra). Outro cenário é o empate com golos, decorrente do facto de cada equipa ter marcado um número de golos igual ao que sofreu. Outro cenário ainda é o empate sem golos. Nos dois primeiros cenários compreende-se que haja atribuição e distribuição de pontos. No primeiro cenário são atribuídos três pontos à equipa vencedora e nenhum ponto à equipa derrotada. No segundo cenário é atribuído um ponto a cada equipa. No último dos cenários referidos não se compreende que haja atribuição de pontos. É certo que o empate sem golos é um empate, no sentido em que nenhuma das equipas se sobrepôs. Mas é menos do que isso e é muito diferente do empate com golos. O empate sem golos é um empate em que cada equipa não cumpre o mínimo, não demonstra capacidade de vencer, porque incapaz de marcar golos. Enquanto resultado, o empate sem golos corresponde à situação que há no momento exacto em que começa o jogo. Em tal circunstância as equipas equiparam-se na impotência, não na potência. É como se o jogo não tivesse acontecido. Ou seja, o empate sem golos é um empate a zeros, é o fim do jogo equiparado ao princípio. Quando assim é, deve valer nada, nenhum ponto para cada equipa. O futebol não é para mansos. Para esses há o curling e a tourada.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria