2018-04-24

foto&legenda # 545 (laissez passer)


Aquilo que distingue alguém não é o facto de ter nascido ou de vir a morrer. O nascimento e a morte são contingências de qualquer biografia, sobretudo pormenores e preocupações da curiosidade cartorial. No intervalo entre o nascimento e a morte há bastantes passos para dar. É isso que arrelia muitos comandantes e escrivãos do futuro, haver quem insista em não desistir de andar, quem continue a desafiar o caminho que, por mania ou presunção, outros pretendiam fatal, função da vontade de deus. Há tanto tempo que caminhar deixou de ser em regime seja o que deus quiser. Os mais novos até vão ao ginásio com frequência maior do que a com que os pais ou os avós deles se habituaram a ir à missa. No horizonte já sobra menos do que o fim. Agora, força da continuação e da diferença que se quer, todas as horas são sempre agora e na hora da nossa morte outra vez. Daí que continuar a andar seja inaugurar a cada passo a potência de começar.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2018-04-19

foto&legenda # 544 (a solidão comunicada)


A vida tornou-se urgência. Salvo falha de rede ou falta de bateria - situações equivalentes à morte ou à quase morte -, a distância perdeu, conquistou-se a comunidade sem propinquidade. Aconteceu a utopia, os corpos e o espírito na mesma morada, uma morada nova e universal sem lugar, casa sem chão, paredes, tecto, porém casa cheia, uma residência permanente de todos. Já não existe nenhures, alguém lá. Agora é tudo aqui, excepto o resto. Não há passado ou futuro mesmo quando há. É estranho o que passa à volta. É estranho que aqui ainda haja à volta. Ser é estar. Somos a aplicação do instrumento que nos estaciona e permanece na dimensão espectral. Estar é estar-aqui. Tornámo-nos manipuladores do que a manipulação nos consente, vultos que estão, portanto que estão necessariamente aqui. Já ninguém pode estar-lá. Se alguém está lá, está apenas fisicamente. A coexistência vingou mais do que trágica, tornou-se compulsiva e superficial. Vive-se numa ontologia de écran que congrega mais do que as forças antigas - o amor, o poder, a verdade, o dinheiro - alguma vez foram capazes de congregar. Quase tudo o que se deseja ou pode tocar está aí - no écran aí é aqui -, na vida que deixou de ser nua e que, com alcance pronto, se segura na palma da mão. Tudo é imediato, contra o que há à volta, porque nada há à volta, fora do écran. Hoje «demora» e «distância» são conceitos velhos, analógicos. Tudo está aqui. Está-se bem. O que há à volta, que não há, não é mais do que um passepartout existencial. A solidão que subsiste é apenas a dos tristes, uma memória vaga, crescentemente vaga, a da tristeza que foi escrita em livros ou em canções. Ainda bem que, ao as pessoas se tornarem passageiras de si, tudo está melhor. Está aqui. Já não falta muito para que os espécimes refractários sejam reunidos em reservas zoológicas que possam ser visitadas por smartphone, beneficiando quem visita, sem presença, da assistência prestimosa e vocal de um algoritmo qualquer. Conheci a Janete quase assim.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2018-04-17

foto&legenda # 543 (die angst des tormanns)


Há sempre quem seja capaz de julgar que continua a ter as respostas certas apesar de as perguntas serem outras. As convicções são assim, estribo de uma certeza que pode ser bruta. Para além disto, em circunstâncias demasiadas não é fácil perceber onde cessa a convicção e inicia a insídia travestida de convicção. É por isso que o fadinho dos sessenta e um que começou a ser trauteado por gabirus que disfarçam mal a cartilha por que se afinam justifica exegese adequada. A angústia do guarda-redes nunca foi a angústia só dele.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria