2006-02-27

foto&legenda # 4


Num lugar chamado Ourém, uma manhã amanheceu diferente. Era domingo. Estava tudo no mesmo sítio, na ordem que a véspera deixou, mas havia um lastro branco onde antes era apenas terra cava, lastro branco alastrado às coisas sobre essa terra. Sob a luz baça da manhã, sentia-se o frio acordado e caído, um frio sem hábito. Era um frio branco, misterioso, cobertor de inverno. Nos lugares mais recônditos, umbrosos, algum desse frio branco tranformou-se em vidro. Era domingo. Domingo também sobre os muros e sobre aquele portão que fechava o caminho. O frio branco, porém, mágico, atravessou-o e foi para além dele. Mas não demorou lá. A terra, lavrada pelo sol, comeu-o. Era domingo.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-02-26

LEGENDA&FOTO - 2

RETRATO AOS 70
São já 70?
Não!
Foram já 70!


São já setentas
(e se tu me tentas…)
São já setenta os anos vividos.
Sete décadas completadas
e na oitava entrei.
Como custa a acreditar!
… mas o tempo, na sua medida – que nossa é –
é assim: cruel, inexorável.

Às vezes, sinto-me como se vinte tivesse
e outros setenta aí viessem…
(quantos projectos!)

Só me falha o joelho esquerdo.
O resto tem sido corrigido,
e... se não fosse o joelho esquerdo outro galo cantaria,
lesto correria,
muitos golos marcaria,
ou “assistiria”,
ou nas minhas balizas evitaria.
Mas não abandonei práticas desportivas:
agora, iniciei-me hoquista
embora sem entrar na pista.

Enfim…
cá vou andando,
sem manquejar… e viva o velho!

A cabeça parece(-me) lúcida,
os pulmões e o coração
lá vão fazendo – bem! – a sua obrigação:
nada de bronquites,
nem de asmas,
só raras constipações;
controladas as tensões,
sempre boas as intenções
(faço parte dos “bons corações”)

Como e bebo sem grandes preocupações
e, depois,
cá vou dando destino ao comido e bebido,
com a próstata em tamanho aceitável,
sem diarreias,
sem obstipações
(embora obstinado me digam
onde só convicto e determinado me acho…)
Do outro lado – ou ali ao lado, ou ao baixo do ventre –
tudo bem quando bem e de pé é tempo de estar.
Não há senões,
nem casos para reclamações.

As pernas andam e correm
- o joelho esquerdo é que… –
e os pés assentam em qualquer chão
e em qualquer chão se firmam firmes,
sem calcanhares de aquiles
e aquelas dolorosas lembranças gotosas.

Mais!
Da carteira não me queixo,
tenho nela quanto é preciso quando é.
Nem de mais nem de menos
… embora, às vezes, de menos pareça.
Mas nunca me desleixo!

Em suma,
estou bem dos pés à cabeça,
e vice-versa.
Tenho é setenta!
Mas que importa?,
se ela, a minha lolita de quase sessenta,
tanto me tenta!

No Bom-Bom, ilha do Príncipe, 27 de Dezembro de 2005
(texto de Sérgio Ribeiro)
(montagem do Pedro Gonçalves,
sobre uma foto de Nuno Abreu e uma gravura)

2006-02-25

FOTO&LEGENDA - 3

(foto de Pedro Gonçalves)

Uma legenda para esta foto?

Mas isto é uma rasteira, ó Pedro.

Porque é querer que o legendador cometa uma redundância.

Porque é desafiar-me a fazer uma legenda sobre quem é uma le(ge)nda!

Sim!, porque o senhor Manuel “Cartuxo” (com x e não com ch, como faz questão de reivindicar porque cartucho a ver com coisas de que ele não gosta…) é já uma le(ge)nda de Ourém.

Não se conhece melhor conversador, e quem quiser chegar atrasado a qualquer encontro que passe primeiro pela loja dele. Terá grande dificuldade em o deixar, chegará atrasado de certeza, mas arrancará daquela conversa amiga mais rico, mais oureense…

E como a uma rasteira se responde com outra rasteira, aqui vai uma outra legenda deixada algures:
“Nem as pequenotas quiseram faltar. Tão interessadas estavam que a certa altura já acompanhavam a prosa do Sr Manuel "Cartuxo" que faz parar (e ganhar) o tempo.”
Enviado por Pedro Gonçalves em dezembro 13, 2005 02:38 PM (in blog Som da Tinta)


(texto de Sérgio Ribeiro)

FOTO&LEGENDA - 2

(foto de José Silva Pinto
escolhida por Pedro Gonçalves)

Porquê Africa?

Porquê tanta África,
tanto África porquê?

Porque Africa é:
As cores.
As sombras.
Sobretudo as gentes,
as crianças,
os velhos.

As caras.
Os olhos.
O desenho dos lábios.
O sorriso.
As marcas do tempo.
O tranquilo saber do mais velho.
O vivido.
A vida!

(texto de Sérgio Ribeiro)

2006-02-24

LEGENDA&FOTO - 1

A foto!

Quem fotografa.
Quem
ou o que é fotografado.
Guardar o momento que o olhar retém.

O movimento agarrado no instante.
No instantâneo.

As cores.
As sombras.
Sobretudo as caras.
Os olhos. O desenho dos lábios.
O sorriso. A vida!

(texto de Sérgio Ribeiro)

(foto de José Silva Pinto, escolhida por Pedro Gonçalves)

FOTO&LEGENDA - 1

(foto de Pedro Gonçalves)

Armou-se, o engenhoso fotógrafo, da máquina onde colhe imagens
e de outras engenhocas e aparelhagens.
Aparelhou, também, o seu moderno e potente alazão,
encheu-o de gasóleo e fez-se ao alcatrão.
Assim, e em boa companhia, se pôs a caminho
pelos caminhos de Castela da ibérica península.

Saindo pela Cova de Iria, para La Mancha era sua empreita.
Cuja era a de que disparar iria sobre tudo o que visse a jeito,
o que é como diz quem coisas diz… atirar a torto e a direito
igual ao que de outro modo é dito: à esquerda e à direita.

Acompanhado foi, é certo, embora sem uma certa companhia,
Sancho, ou qualquer outro nome essa companhia tivesse,
alguém que suas penas e dores de fidalguia tomasse,
alguém para que tanto como de amigo como servo lhe servia.

Alguém que, na partiha de caminhos e de aventura,
com razão e bom senso, capaz fosse de lhe gritar
“Quais gigantes?” se moinhos viesse a encontrar
e sobre eles o visse a atirar-se com ganas de loucura.

Qual quê? Sem Sancho (nem senso) se tinha feito o engenhoso à estrada
e vá de fotografar moinhos como se fossem outra cousa.
E agora eu, a quem ele ofereceu o que naquela parede pousa,
que me desenrasque e que diga algo que não seja… nada.

E digo, ah! digo: não têm velas e vento os braços desmesurados
a que o cavaleiro das imagens quis fazer frente,
mas não tomou ele nem poses nem ares de valente,
“agarrou” as manchas escuras no fundo branco de sombreados.

Fez ele fotos sobre fotos, bem à sua altura (que não pouca é),
nas tais máquinas digitais, que depois passou a papel.
E, feliz, voltou à oureana guarida em grande tropel,
para oferecer aquela beleza a quem da sua amizade faz fé.

Deste modo e desta forma um outro caminho se inicia.
Este… que estes dois começaram agor’assim a percorrer
para a um deZÉfio amigo, e algo inesperado, responder.
P’ra já fica a sancha legenda sob a quixotesca fotografia.

(texto de Sérgio Ribeiro)

Abertura... ou como tudo começou

Do será p’ra logo?
ao é p’ra já!
Estavam ambos postos em seus desassossegos,
cada um em sua loja, contíguas embora em caves separadas por muros, rochas e talvez arqueológicos deixados e não achados,
onde eis senão quando lhes chegou aquele desafio com duplo endereço.
Não se sabe bem ao certo qual dos dois
– o jovem alto e magro, de cabelo ao vento,
ou o velhote mais baixito e mais magrito, de curta barba branca –
subiu as escadas da catacumba a dois-e-dois,
esperou impaciente o verde do sinal semáforo,
atravessou a rua-avenida,
desceu a quatro-e-quatro os degraus que levam (e trazem) às catacumbas do outro lado.

- É pá… leu o desafio que nos faz aquela que Maria José se assina?...
- Ah pois li… ia mesmo procurá-lo!
- E…
- E? Isto não fica assim!
- Ah pois não…

(“Estes dois são como eu: não resistem a um desafio, a uma mulher bonita e a uma boa pinga”, diria um outro que os conhece… embora não muito bem.)

Feita a pausa, que permitiu o que entre parênteses ficou, retomaram eles o fôlego:
- Ah pois não!
- Então?
- Então… não há p’ra logo…
- … é p’ra já!
- Um faz a proposta de uma foto, o outro escreve uma legenda…
-… este riposta com a proposta de um escrito para que o outro arranje (ou faça) uma foto.
- ‘Tá feito!
- Ora aí está…
- Vamos a isso…
- Qual quê?! Vamos mas é a isto…

Foto&legenda atira um, como quem diz “mata!”, Legenda&foto replica o outro, como quem diz “esfola!”.
Foto&legenda e Legenda&foto em alternância, treplica o primeiro.

(“’Tá visto… estes dois não têm juízo nenhum!... se o mais baixito fosse gordito e o altarrão mais ancião quem lembrariam eles?”,
observaria quem a observar aqueles dois estivesse e, conhecendo-os, acrescentaria: "e não vão descansar enquanto não meterem outros iguais a eles nesta aventura")

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