2008-08-23

foto&legenda # hors-série (das continuações, ix)

Confidência. Estou a pensar. Talvez mais do que isso, estou a imaginar. O corpo não é península, é continente. E as feridas são satélites alojados aí. Íntimas, muito íntimas, doem e continuam a doer, mesmo depois de cicatrizarem. Não é segredo, as mágoas não têm fim, não são algo que possa acabar. Creio que são assim, antes de as imaginar. __________ Aprendi a beber café sem açúcar com o meu irmão. Mas isto não é importante. Estou a imaginar a canção em que Nick Cave canta you are not a home for the hearts of your brothers.* E a imaginar o que pode entrar pela janela da cozinha, se aberta. Não sei. A janela não é muito alta, é acessível facilmente. Talvez devesse preocupar-me com o facto. Porém não consigo imaginar que perigo possa passar por aí. Deus?, o bom. Deus não é o melhor dos amantes, é apenas uma personagem que imagino em technicolor. Sim, continuo a imaginar. É tudo quanto depois exige. Depois, exactamente. Agora não é tempo de admitir regressos. Já foram passos demasiados para diante.
fotografia © Aino Kannisto
legenda © Eliz B.
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* verso da canção “As I sat sadly by her side” (in No More Shall We Part, Mute Records, 2001), de Nick Cave & The Bad Seeds.

2008-08-16

foto&legenda # hors-série (das continuações, x)

O que mais vejo são as tuas ausências somadas às minhas e o meu corpo preenchido com isso. Desespero?, não consinto que seja. Adianto-me às suas consequências. O que permito sobre o meu corpo é a injunção da loucura, para que pareça certo e consonante, sem desvio à esperança. E depois? - muitas vezes perguntas tu e depois? -, depois é depois, um lugar como outro qualquer. Uma sina, dizes. Mas não a nossa sina, não uma sina comum. _____ Como a ciência velha, tu acreditas em leis. Poderia dizer ainda, tu ainda acreditas em leis, mas não compreenderias o sentido do advérbio. As certezas são-te mais do que tu és. É isso o que mais nos afasta, porque eu tendo a afastar-me dos imperativos saturninos a que obedeces.
fotografia © Traci Matlock e Ashley MacLean
legenda © Eliz B.

2008-08-13

Foto & Legenda - 15 de Agosto

Pode haver festa na aldeia sem filarmónica, da terra ou de perto?
Sem a música pela estrada, pelos caminhos da procissão a acompanhar a padroeira em desequilíbrio porque o alcatrão não chega a todo o lado, mas a fé sim e de lá não quer sair?
Sem o sol a fazer da tuba um espelho, sem a jovem de óculos escuros do saxofone, sem o veterano do trombone de varas, sem aqueles ali de passo trocado (quantos?) e, ao fundo, o bombo que esconde o tocador?
Sem a nuvem que parece que sai do sopro do jovem que anda na universidade, lá longe, e vem ao fim de semana juntar-se aos que por cá labutam?
Sem a marcha Almadanim, mesmo que a Tuna já não seja a do José Jacinto, e na “banda” há muito não toquem o Tó Á, e o Abílio, e o J’aquim Tuba, e tantos outros?
Digam-me se pode?
Dizem os festeiros – e o senhor prior, claro, que ele é que tudo diz, ou, pelo menos, a última palavra diz – que sim.
Mas eu (a)teimo a dizer que não. Que assim ou não é festa, ou não é aldeia, ou tudo isto já é sei-lá-o-quê… e siga a dança a toque de um conjunto de barulho à toa e fumos de cores, tudo comandado de… uma “mesa de mistura”. Até porque o que é preciso é facturar que estão cá os “ça va”.
Ora bolas p’rá “festa na aldeia”, que não é da aldeia, que nem festa é!
foto & legenda de s.r.

foto&legenda # 421 (construção)

A mesma dúvida, se é amarelo e serve para fazer coisas grandes, labirintos, habitações, mundos, é um lápis.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-08-09

foto&legenda # hors-série (das continuações, xii)

Sou do equinócio outonal, da falência de setembro e depois, quando o tempo torna áspero. O verão é uma demora que sofro, não sou seu resort. Imagino o centeio quebrado, as sombras a nascerem nas searas e nas casas caiadas de branco. Sinto o calor a apertar-me a respiração, a quietar-me. Talvez seja sob a luz do estio que mais revelo a fuga em que me consumo. No verão recuo até recolher-me dentro de mim, onde descubro começarem as vertigens. À noite é diferente, mas as noites de verão não são autênticas. Durante o verão não se diz acentuado arrefecimento nocturno, o regime é distinto. Os cheiros são mais soltos, vagam devagar, como se perpetuassem o tempo, produzindo um efeito semelhante ao cigarro com que me acompanho. Não sei, é estranho. O verão faz-me andar lentamente e voltar para trás, para o abrigo telúrico das tardes. O que faço?, espero o outono, o meu ofício. Espero-o sozinha, para a insídia ser perfeita, a continuação.

fotografia © Анастасия Ти́хонова
legenda © Eliz B.

2008-08-07

foto&legenda # 420 (o jogo da cadeira)

Os espaços vazios devem ser preenchidos de acordo com o manual de instruções, cinco números, duas estrelas, uma cadeira.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-08-05

foto&legenda # 419 (eternidade em que os deuses morrem)

O que falta fazer?, a parte de baixo, onde os segredos são guardados entre capas, numa eternidade em que os deuses morrem e os homens combinam encontrar-se com as mulheres. Vem.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-08-02

foto&legenda # 418 (a condição que nos é calada)

Aproximamo-nos vindo do silêncio. Somos a condição que nos é calada.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria