2012-12-24

foto&legenda # 501 (aos que estão)

Ter os dias com futuro, com o tamanho que abrem, e depois o resto, vê-los parte de um enredo maior, uma sucessão de momentos, esperas e nexos, uma espécie de casa que habita como é habitada, com a esquadria e o ritmo das coisas. Este é o mundo a nossos pés, o trono que nos encontra, firme. Se há rebanhos, é provável que haja lobos.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-12-18

foto&legenda # 502 (passagem)

Ninguém é mais do que passageiro, alguém que passa e deixa o rasto por que é perseguido. Olhando-se para trás revela-se o acumulado de destroços produzido por essa passagem, a paisagem pessoal, pronta e apocalíptica como a balsa da Medusa, vista desde o conforto interior de uma cápsula quase animal, quase máquina, quase aurora, porém apenas o que é, uma entidade outra por si mesma, instantânea, alegoria e caverna, com capacidade de conduzir-se inscrita em reflexos de retrovisor. Por cada fim que se esgota, inauguram-se outros meios que repetem o processo de crer-se que se crê. Consuma-se a possibilidade do que é impossível, abre-se uma porta, verifica-se se o veículo ficou estacionado sem ser à lavrador. Tudo o que ficou para trás não detém a perseguição, acrescenta-a. Não há destino que não seja continuação.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-11-07

foto&legenda # 500 (a palavra mentira)

A selha está emborcada. As nuvens fazem de mar. Por isso ou por outro motivo qualquer - o escrutínio da causa não é fácil, pode até ser assunto de foro cavado e fundo - há quem vislumbre por aí piratas e monstros e os anuncie como Pedro anunciava o lobo que não havia. Visões, alucinações e ambições são como os chapéus, há muitas. O senão nesta história é que abunda quem não vê os piratas e monstros anunciados e só seja capaz de ver os filmes que são de ver à vista desarmada. Miopia e fé da má explicam aquela abundância, sentencia gente de alma espessa. Amén. O apocalipse zombie já está a acontecer. Piranhas e tubarões?, isso há, de ver. No circo.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-10-11

foto&legenda # 498 (por ser, por estar)

Existem menos labirintos, menos arquitectos da condição das coisas. É magnífica a sensação de abandono que daí decorre, a sensação maior que ela acorda, a irritação que vem também. A festa é o combate, pá, mesmo e ainda no fim. Um sorriso é quanto ainda custa o que sobeja e é necessário manter. Que não há alternativa - alternativas, então, nem falar -, soa ao recital do costume. Esse recital é como as orações da condenação, serve sobretudo para evitar que, em vez de se cantarem as vésperas e confirmar as certezas que elas permitem, se faça zapping para descobrir a realidade e o que a transforma ou pode transformar. Tem que viver-se até ao momento da morte para descobrir-se que a história não é obrigatoriamente e sempre a mesma. Isto não é uma crise de mênstruo. Há espíritos e corações que ainda batem alerta.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2012-10-09

foto&legenda # 499 (pátio da galé)

Bendita pátria, bendito regime. Remar, remar. Todos por um e cada um por si. Lá fora há mais. Os culés, por exemplo, clamaram independencia, independencia, aos dezassete e quarenta e um, lá na casa deles, em català. Depois há os outros, o mister Jesus a dizer que viu um extraterrestre argentino, alguém capaz de imaginar a nossa senhora de fátima com decote, nunc et in hora mortis nostræ em língua morta, jetzt und in der Stunde unseres Todes em língua de ópera nova, igual ao das meninas da casa dos segredos, e há as outras coisas, uma bandeira hasteada de pernas para o ar. Amén, Aníbal, avé. Guarda a língua, como a nacional republicana. As regras da cerimónia?, enxotar a multidão, convidar apenas intérpretes de música ligeira e encostadas e encostados gerais da república com vestido, salto alto, sindicato e gravata a condizer. Grava-se uma explicação da selecção para a televisão, que foi assim por causa do défice e, para dar o exemplo, da austeridade. É povo, é povo lindo, o melhor do mundo, olé. O que aconteceu na catedral três dias antes?, as notícias contaram dois zero para os forasteiros. A estação não está para aves, as de arribação ou outras.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-10-02

foto&legenda # 494 (aguentar)

Repete-se o que aconteceu. Não adianta drenar a situação, a coisa é forte, impõe-se. Não estar é o pecado que há quem talvez gostasse de resolver. Mas é preciso suportar, acompanhar a situação, resolvê-la. Há sempre algo que depende disso.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-09-25

foto&legenda # hors-série (a linha das máquinas macias)

Light reflects from your shadow
It is more than I thought could exist
You move through the room
Like breathing was easy
If someone believed me
*

Compreende-se mesmo quando não se compreende. É uma questão de reciprocidade, de ver através do que é, como é. Ela é bonita, tenra, ele está fardado e armado, parece duro, é remunerado para ser duro. Mas aqui o que importa não é ela, também não é ele, é a situação. E a situação é a seguinte. Conheço o rapaz que está de calções, corpo equilibrado no foco, com a máquina olho apontada para capturar a alma posta dentro do amplexo, o amor que tenta interromper o alvoroço, sem deixar de ser alinhamento do corpo, dos corpos, com o manifesto. Os ícones são feitos sempre desse alinhamento invisível, de alguém que esteve próximo, quase como se não tivesse estado, e que, em diferido, nos permite estar no momento e no caso em que não estivémos.
fotografia © Nuno Botelho
legenda © Sérgio Faria
__________
* Versos da canção “Angels”, do álbum Coexist (Young Turks, 2012), da banda The xx.

2012-09-20

foto&legenda # 496 (contar)

Esta reunião faz-nos contar outra vez. Quantos somos?, estamos entretidos neste diálogo de perguntas dentro de perguntas (mais de sentido do que de forma) que nunca acabam. Começam as dúvidas. Contando o cão, contando o polícia, contando a criança às cavalitas, contando os outros, somos muitos. É isto, este pronome indefinido, resposta que chegue? Contando contigo, que trazes e mostras as palavras em que acreditas, somos ainda mais, somos exactamente quantos somos, portanto mais do que muitos. Sei que posso contar contigo e que, se te perguntasse porquê?, tu explicarias melhor do que sou capaz de fazer agora.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2012-09-18

foto&legenda # 495 (os dias do intervalo)

A cidade é um lugar grande. Em inteiro ou em parte, somos nela os dias todos, condenação de que não há remissão, liberdade de que não há soltura. Alguém pode afastar-se, ir ou voltar à serra, porém a cidade vai também, se é que não está já lá. É um caso de compreensão indiferente à vontade de quem compreende. A cidade está onde estamos, está connosco, compreende-nos do mesmo modo que a compreendemos. Mais do que um sentimento - que é -, é uma condição. Estamos a aprender a viver com ela, a conhecermo-nos melhor, no combate contra os espectros e a realidade que os espectros revelam. Precisamos de conversar, precisamos de estar. A estação não está para piqueniques. E não é só porque o futuro já não é o que era. Nunca foi. Facto que estamos a começar a saber com mais certeza para não repetir o engano de confiar sem acertar as contas, de modo a que, no fim e depois, as contas batam certo ou pelo menos o erro seja detectado quanto antes e o menor possível. Precisamos de estar para isso, aritmética e política. Citando um clássico, o desgoverno não é órgão de soberania.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-09-12

foto&legenda # 493 (cartas abertas ao primeiro ministro)

Não julgue que não sabemos, sabemos. Sabemos também bem o que dizemos.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2012-09-04

foto&legenda # 492 (maybe it was an iguana)

Se se fala de bicicletas, fala-se de voar - o nome e o verbo estão associados -, pelo menos na realidade. Na ficção - a gramática permite tanto quanto a matemática - talvez seja diferente. Se calhar não existem extra-terrestres, se calhar não há uma ponte lá em cima, se calhar o mundo não foi pensado para se usarem os pés para subir e descer, vice-versa e pedalar. É possível que existam mais orações do que imagens sobre isto. O que é que interessa?

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-08-28

foto&legenda # 491 (a paisagem propícia)

Trazer os dias atrás, como se fossem carne dos outros. Carregá-los na interrupção que permitem, à cal e ao sal, à vontade de que o mar foi guardado. Aspirar à vida simples, escrutinar os prazeres pequenos e escolher aqueles que acumulam culpa com vagar e que rimam com os ruídos soltados pela brasa. Arde lá fora. Quase que não há aragem. É aconselhado escolher a sombra, demorar aí a contemplação, o cio, a certeza de amanhã, enxotar os insectos. Deus seja louvado, se se juntar à festa. Ainda há quem esteja de luto pelo sacana. Aguentar sobre o lombo da estação, que tem horas bravias e às vezes exige o calor pulsado dentro do calor, exige que se continue a suportar os cortes rombos da terra, o selo dela, as cicatrizes que lhe sucedem, os filhos que aí foram sepultados. Há quase sempre algo que não está certo, há quase sempre alguém que quer que a improbabilidade resulte aí, casa para sorte mais quieta, cama para o mesmo amor sem fim. Engano, tanto engano. Cor escassa, roupa suada, trabalho que não surde o ano inteiro, esta paisagem é assim. O que é mais culmina com a presença e com o nome que lhe dá autenticidade. Quem prefere o sul percebe melhor a condição da ausência.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-07-19

foto&legenda # hors-série (e o chão connosco)

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E o que isso poderia ser?, não disse. Estava concentrada no contrato. Tinha-se desviado da cómoda, deambulava descalça enquanto lia. Tempos duros, como escreveu Dickens, como era o soalho. Talvez. Ela procurou-a sobre o ombro direito e com o movimento do torso sentiu que deixara o coração mais afastado dela. Que, não tens que sentir-te culpada, ainda deambulava descalça, somos só nós e o chão connosco.

fotografia © ?
legenda © Eliz B.

2012-07-10

foto&legenda # 490 (uma casa sem paredes)

- Sabes?, não é tipo batata a ti, batata a mim. It takes two to tango.
- Até ao tango isso foi em inglês técnico, não foi? A essa não precisei de equivalência.
- Também não querias ser engenheiro, pois não? A reputação via engenharia já teve dias melhores.
- Abrenúncio, abrenúncio, abrenúncio, três vezes. Eu cá sou pela metafísica antes de haver para aí quem padecesse da vontade de exílio parisiense. Provo já. Como ilustração da matéria e da obra que concretiza o espírito ecuménico, parafraseio, uma casa sem paredes. É uma paráfrase.
- Paráfrase, soa bonito. Como desvio colossal. Detenho-me apenas na intriga sugerida por uma dúvida que é capaz de ser engenheira. Pode chamar-se casa a uma casa sem paredes?
- Pode. Foi um escritor, ainda por cima socialista, que pensou nisso como símbolo do que é universal. É poesia. É mais ou menos o mesmo que dizer uma cabeça sem cérebro.
- Uma cabeça sem cérebro?
- Ajudo-te. Olha os zombies.
- Onde?
- Em lado nenhum. Era só um suponhamos.
- Suponhamos, então, senhor dr.
- Senhor dr., isso mesmo, sou eu.
- Pois és, somos ambos. Continuando.
- Se calhar também podia ter conseguido o diploma do curso de licenciatura em alvenaria. Local sem paredes, casa sem paredes, é tudo a mesma coisa, não é?
- Ainda estamos no suponhamos? Ou já saímos?
- O que é que achas?
- Acho que não sei lá muito bem.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2012-05-22

foto&legenda # 489 (no estádio municipal de oeiras)

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Fazem falta as pessoas tomadas pela alegria, as famílias inteiras que isso, por causa de um caneco como nome de pátria desgraçada, um caneco que se desmonta e fica nas mãos. Um parafuso não é motivo para a intermitência da alegria. Porque para tristeza já basta quando quem agora alegre tomar consciência de que a supertaça já foi, no sentido em que, a vontade de deus ou do filho dele não é chamada para estas contas, a alegria dessa há-de ser de outros. Embora esteja grato desde já, não agradeço ao peregrino, agradeço ao meu presidente, o único que reconheço meu e presidente, o senhor Jorge Nuno, brioso mais do que a briosa, do que qualquer outro presidente, que não tenho e não quero ter. Fazem falta as pessoas tomadas pela alegria.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2012-05-11

foto&legenda # 488 (ascent)

Já cansa esta quaresma que não acaba e que continua a levar homens com quem sabíamos ser alegres.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2012-04-06

foto&legenda # 487 (a quaresma acaba sempre um dia)

Começaram a falar sobre pesca, tópico evangélico, o anzol, a qualidade do isco, com derivação para as sextas-feiras e a dieta. Mastiguei devagar, as palavras e a carne, para esconder o tédio, talvez mais do que isso, o desprezo pela conversa. Às vezes sem falarmos temos mais força, sinto isso. Acabei de beber o vinho. Imaginei a hipótese de três leopardos brancos sentados sob um cedro, como no poema de Eliot. Depois levantei-me e afastei-me dali, como se me despisse da canção que fazia o fundo. Subitamente um uivo. Onde? Quando? Porquê? Julgo que não podemos continuar a amar-nos assim, com tanta paixão, com tanto governo. Apetece-me fumar enquanto espero. Os dias continuam a ser de caça. Este é o território onde podemos crescer e conhecer a fome. Aponto. Um estrondo seco, outro, tantos quantos os necessários, não mais do que dois, um par. Ninguém nos separa. A arma tem alma lisa, confesso-me a ela, ela prolonga-me. Alguém há-de acreditar em nós. Mostro tudo, mas vê-se apenas parte. A diferença que faz ou pode fazer o que se vê não me perturba. Estou do outro lado, é daí que proponho o destino. Não acredito em ressurreições, creio apenas em tiros falhados.

fotografia © Cynthia MacAdams
legenda © Sérgio Faria