2006-07-31

foto&legenda # 135 (sinais, i)

Há sempre um lugar superior para onde os sinais convidam ou empurram.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2006-07-29

foto&legenda # 134 (vejo aves vejo pégasos, ii)

Não vejo. Mas acredito em serafins, querubins e tronos, em dominações, potências e virtudes, em principados, arcanjos e anjos, por junto setenta e duas formas de névoa celeste. Acredito em criaturas com asas. Não vejo, porém é-me exacta a sensação de ter olhos. Creio no que voa.
fotografia © Flor Garduño
legenda © Sérgio Faria

2006-07-28

foto&legenda # 133

Com o calor, é ainda o trabalho. Chame-se-lhe a colheita, o produto do estio para o celeiro, o esforço, a prevenção da estação das chuvas, chame-se-lhe o trabalho de verão.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-07-27

foto&legenda # 132 (vejo aves vejo pégasos, i)

Sou cego. Convivo com a cegueira com intimidade suficiente para saber que não vejo. Não acredito na luz. Acredito apenas no que vejo. Acredito também no que alcanço com o corpo, em particular com as mãos. E acredito também no que ouço, cheiro e saboreio. Mas acredito sobretudo no que vejo. Acredito naquilo que voa. Por isso direi todo o horóscopo que é imediatamente antes de balança. O mais não vejo. Não vejo. Não quero ver.
fotografia © Joyce Tenneson e Pirelli
legenda © Sérgio Faria

2006-07-26

foto&legenda # 131

O som é uma expressão nua, que se impregna no corpo. Sobre a pele, a entranhar-se, o som é como o azul para os olhos, o ponto de metamorfose em que o silêncio é revelado.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-07-25

foto&legenda # 130

Um dia alguém escreveu num manifesto und die Menschen sind endlich gezwungen, ihre Lebensstellung, ihre gegenseitigen Beziehungen mit nnchternen Augen anzusehen *. O que, traduzido em provocação, significa que nenhuma cabeça é eternamente no lugar, o seu ou outro.
* a tradução da citada passagem, do Manifest der Kommunistischen Partei, proposta pela Editorial «Avante!», é a seguinte: “e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas”.
fotografia © Oleg Klimov
legenda © Sérgio Faria

2006-07-22

foto&legenda # 129

Um, dois, três, quatro... Noite após noite, o califa adormecia, saciado de narrativa e de oxigénios. À última de mais de mil noites a história já não era a história das histórias, mas a história da vida, do conto, do encontro. Era a história da vida de quem sobreviveu. Noite após noite... Um, dois, três, quatro... Respirar, suspirar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-07-21

foto&legenda # 128

O leopardo é um animal que se conjuga no singular. E nunca o seu suporte é a cadeira ou a mesa onde está a carne que come. O seu equilíbrio é superior, em solidão e em movimento.
fotografia © Jaschi Klein
legenda © Sérgio Faria

2006-07-20

foto&legenda # 127

A vida, nos seus diversos momentos, é animada por dois processos paralelos, porém complementares. Por um lado, há alguém a tentar adestrar um instrumento, acrescentando alcance à sua acção e à sua posição. Chamemos melodia ao produto deste processo. Por outro lado, há alguém em espectro a ser revelado pelas contingências, pelas irregularidades, pela sede. Chamemos ritmo ao produto destoutro processo.
fotografia © André Simões
legenda © Sérgio Faria

2006-07-19

foto&legenda # 126

Fruto do mar, caído do céu, assim na terra.
fotografia © Lucien Clergue
legenda © Sérgio Faria

2006-07-18

foto&legenda # 125

A fibra óptica e as respectivas ligações é a matéria do ofício do Chico Conde. Mas ele é mais do que isso, condestável. Para que conste nos anais, já compôs um tema de rock de intervenção, denunciando a ditadura salazarenta. E é meteorologista naïf. Faz registos regulares de observações de fenómenos atmosféricos e de outros sinais que a natureza presta. E por eles atreve-se a estimar cenários. Amanhã, o tempo... Às vezes esquece-se. Outras vezes não acerta a meteorologia do dia seguinte. Mas continua a espantar-se com a regularidade das coisas.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-07-17

foto&legenda # 124 (para geometria, v)

Porque é áspera a mortalha de que é feita a parede, o corpo projecta-se para o seu duplo, para a tangibilidade na superfície vítrea e fria do espelho ou no papel da imagem.
fotografia © Robert Mapplethorpe
legenda © Sérgio Faria

2006-07-15

foto&legenda # 123

Quase sempre o limite é o que se mostra. Mas para muitos o limite é o que se vê. Por ver ser um modo de tocar, leve, levemente, no que não se tem. Assim é também nas galerias da carne. Quando tudo à mostra ou quase, gera-se, em quem vê, um efeito de omnividência. E a ilusão, enquanto ilusão, torna possidente quem julga sente ver tudo. Não tanto por ver quanto por não poder tocar. O axioma é antigo e cantado por Springsteen, you can look (but you better not touch).
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-07-14

foto&legenda # 122

A sombra é a oração. O sono é a penitência. As cruzes são a guarda. O homem é o adereço. A portada é a salvação. A cal branca é o roteiro.
fotografia © Robert Häusser
legenda © Sérgio Faria

2006-07-13

foto&legenda # 121

Há já tanto tempo que esquecemos que a esperança é uma porta. Há já tanto tempo que não espreitamos atrás dessa porta porque julgamos saber o que está lá. Há já tanto tempo, tanto tempo, sequer nos atrevemos a abrir essa porta. Há já tanto tempo. Uma porta. Basta abrir a porta e o outro lado que ela guarda. É uma porta, apenas uma porta. Basta abri-la. Basta fechá-la. Basta que não esqueçamos que é uma porta. A fechadura e a chave são um pormenor. A porta. O que é relevante é a porta. Abre. Fecha. Abre e fecha. Nenhum segredo. Aliás, a porta foi inventada antes da roda. O que é significativo. Era maior a necessidade de abrir e fechar os lugares do que rolar. Mas há já tanto tempo que esquecemos que a esperança é uma porta. Há já tanto tempo que esquecemos que a esperança é uma porta verde com um puxador vermelho em forma de coração invertido. Uma porta. Um coração. Há já tanto tempo. Nenhum segredo. Será amnésia? É que é apenas uma porta. Uma porta. Abre. Fecha. É um dispositivo simples. Um painel, um eixo, um quadro. Abre e fecha. Uma porta. Um coração. Um puxador. Um coração. Há já tanto tempo que. Há já tanto tempo que esquecemos. Há já tanto tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-07-12

foto&legenda # 120 (variação sobre paráfrase)

Pelo vidro, transforma-se o fotógrafo na coisa fotografada.
fotografia © Abe Franjdlich
paráfrase © Sérgio Faria

foto&legenda # 119

Pela água, transforma-se o fotógrafo na coisa fotografada.
fotografia © Clifford Ross
paráfrase © Sérgio Faria

2006-07-11

foto&legenda # 118

O futebol é um regime simples e provavelmente o primeiro a lograr a instituição, de facto, da liberdade de expressão. Todos os interessados têm direito à palavra.
Café Central, cinco de Julho, quinze e dezassete. Um disse vamos lá a ver, os gajos também não são o Lúcifer. O outro, atalhando a concordância, acrescentou pois, e se o menisco do outro é fraco, propenso a lesão, substitua-se por um matraquilho, que é mais resistente.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-07-08

legenda&foto # 17

Acautelando o manifesto das recordações que os olhos já não lhe guardam, começou a detalhar as cláusulas do seu contrato com a memória. Numa dessas cláusulas, compreendida no capítulo das pessoas, com a justiça de que foi capaz, escreveu o meu professor de matemática veio da terra das laranjas.

legenda © Sérgio Faria
fotografia © Nuno Abreu

foto&legenda # 117

A cor é apenas uma parcela de três, um painel de um tríptico. Mas ela é mais. Ela é o capuchinho vermelho. Ela é o lobo.
fotografia © Pjotr Jaxa (de uma cena do filme Rouge, realizado por Krzysztof Kieslowski)
legenda © Sérgio Faria

2006-07-07

FOTOLEGENDA - 47

Cada roca com seu fuso, cada terra com seu uso.
Cada vila (ou cidade) com os seus tipos típicos.
(Em França diz-se que chaque village a son idiot… l’idiot du village, não no sentido pejorativo que idiota tem na língua portuguesa). Ourém é uma terra cheia de tipos típicos, o que quer dizer, como alguns dirão, traduzindo, que temos cá uns gajos que são cá uns cromos…
E se já aqui foram legendadas fotos de alguns dos que são emblemas (o que não quer dizer emblemáticos) da urbe, faltava o Conde.
Não o outro, o que repousa lá em cima na cripta monumento nacional e deu o nome a ruas e escolas, aquele a quem se dedicou um congresso, o que deixou de ser D. Afonso IV, Conde de Ourém – o que era incorrecto – para ser D. Afonso, 4º Conde de Ourém, o nosso Conde do século XV.
Pois estoutro Conde de Ourém é do século XXI e já vem do século XX. Não ficará na História, não dará nome a ruas e a escolas, mas faz parte das nossas vidas. Dele há estórias aos molhos – melhor: aos litros! –, tantas que encheriam blogs – e almudes ou tonéis –, e dele temos a imagem simpática (por vezes feia…) de um vizinho que se perdeu na vida, ou que encontrou um modo de viver a vida que é muito seu, e que connosco convive, vizinhamente.
Este Conde é nosso como dele parece que todos somos. Sobretudo quando a dose “terapêutica” ultrapassa níveis que estão sempre altos.
Vivó Conde!

foto(s) de Nuno Abreu
legenda de Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 115

Na cidade, à noite, os fantasmas são eléctricos e o seu rasto é de luz. Revelam-se em mistério technicolor e resistem luminosos. As ruas transformam-se em pátios lucíferos. Neste domínio, eles sobrevivem também, porque se destacam da sombra que a hora nocturna não lhes consegue. Respeito-lhes o silêncio.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-07-06

foto&legenda # 114

No futebol, às vezes, é como nos matraquilhos, joga-se em regime perde-sai e sai-se.
fotografia © AFP
legenda © Sérgio Faria

2006-07-05

foto&legenda # 113

Há jogos de intensão complexa que se condensam em intenção simples.
fotografia © Luca Bruno / Associated Press Photo
legenda © Sérgio Faria

2006-07-04

foto&legenda # hors-série

Grito hemorragia!, hemorragia! e olham-me com espanto. Não derramo sangue, não agonizo. Dou pulos, dou saltos, aviso. Afio o gume da lâmina. Dou cambalhotas e faço acrobacias com as mãos. Continuam a olhar-me com espanto, como se fossem testemunhas da transubstanciação, em mim, do juízo em loucura. Apenas ela se aproxima e diz sossega, estou aqui, venho buscar-te. Reajo, mas quem és tu?, eu não te reconheço. Depois grito, grito sobretudo para os outros, sou uma pedra de xadrez!, pedra de carne!, não jogo à macaca! Dou um passo atrás, afastando-me dela, e aviso-a, foge, foge que eles vêm aí agora, estão a aproximar-se, foge antes que te embarguem. Mas ela fica e estende-me a mão, disposta a colher-me, parecendo expressar uma cumplicidade através do gesto que não sei se é cumplicidade. Os outros, não obstante a aproximação, permanecem a uma distância significativa. Então clamo epidemia!, epidemia! E ela repete sossega, estou aqui, venho buscar-te. Mas eu não me entrego. Também não vou com os outros. Simulo a corrida, saio.
fotografia © Carlo Diana
legenda © Eliz B.

2006-07-03

foto&legenda # 112

O futebol passou por aqui. Mas dizer isto, apenas isto, assim, não chega. É necessário acrescentar a memória e o trauma. O lugar era a baliza. E aos homens mandatados especificamente para a sua vigia chamava-se um nome estranho, guarda-redes.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria