2010-09-27

foto&legenda # 469 (à grande vitesse)

A solução para o mundo continua a ser a do século xix, dizem, não a do espectro que paira sobre a senhora chamada Europa - que foi levada por um boi -, a da ferrovia. Via única e sem obstáculos prováveis. À, vrum, grande vitesse. Destino?, fora, sentido oposto ao do atlântico, para as cidades muito grandes onde se fala estrangeiro. Apesar das autoestradas, aqui estamos ainda na idade a pedal. Estamos a pedalar contra o atraso, precisamos de pedalar, a demora é crescente e já larga. O melhor talvez seja tirar um bilhete de comboio. O mundo muda em surtos temporais cada vez menores, uma quinzena, uma semana, não tardará que aconteça a ritmo diário ou à velocidade de uma viagem de intercidades. Exemplo. Entra-se em caxarias, sai-se em santa apolónia ou vice-versa e, tcharan, o mundo transforma-se outra vez dentro do mesmo fuso horário. O problema é que, seja em sentido descendente - na ida -, seja em sentido ascendente - na volta -, não há muitos horários para escolher. Na linha do tua é pior, só de camioneta. Mas o que interessa isto?, não é? O que interessa é o futuro. Não interessa se andamos a trabalhar para um mundo que nos renegará, com epistemologia acelerada e paisagem dromológica. A experiência que há-de vir é a da dissolução, o mundo haverá de chegar ao limite de não ser mais do que dissolução, sempre e só a acabar, em ruínas e vias de extinção permanentemente. Viveremos com a mesma excitação de agora mas encostados à excitação das coisas, numa sobreexcitação. A revolução que perdeu o prazo de validade que nunca teve acrescentar-se-á indefinidamente na promessa, como já sucede. Acontecerá a arrumação contra capitalista. A américa deixará de ser a américa e no entanto continuará a haver americanos. A culpa tem que ter alguma morada, este é um imperativo analógico inultrapassável, mesmo na era da vertigem. Entendes?, pois entendes. Neste momento não temos tempo para procurar volumes no céu e descobrir o horizonte. Será o que será. Até os pedais nos falham. Agora não caminhamos, corremos. Com o capacete não dá muito jeito mas são as regras, para evitar contusões na cabeça, não queremos problemas com a inspecção aqui ou no estaleiro. Segurança e higiene no trabalho. Sabes como é, de algum lado há-de cair o futuro e em algum lado há-de despejar-se a dívida nacional e o défice público. Portanto previdência, como a caixa para onde, por ano, todos os meses e mais dois vão onze por cento do nosso suor. Só no desemprego é que não. A minha proposta?, é melhor do que a do engenheiro, verter bourbon para dentro das nossas sombras para que, do mesmo modo que as estacas suportam as obras públicas, as scuts e as derrapagens de custo delas, possamos assentar em algo que possa simultaneamente aquecer-nos e sustentar-nos. Vem aí o frio. Sejamos ousados. A produtividade, a competitividade, a ilusão, algo assim, nada que implique despesa ou aumento do endividamento. Ou, mais arriscado e provavelmente ainda económico, façamos como o filho do carpinteiro ensinou, oremos. E, devagar, um orçamento do estado para cada ano, mesmo que atrasado.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-09-23

foto&legenda # 468 (que a freguesa deu ao rol)

Se estamos a falar de autenticidade, e estamos, convém esquecer a canção que é antiga e não é para aqui chamada. Esquece também a minha doença, é minha e já só tu acreditas, desculpa, é mesmo assim. Supõe que está tudo parado, que gestos de ofício, alguns bruscos, foram estancados subitamente mas o sangue ainda está neles, numa pulsação quase travada, de animal hibernado. Imagina que à volta a vida continua, apenas a cor de ferrugem consuma a quietude. Eu fico encostada à vida de ontem, ao calor que define o corpo. Não consegues imaginar, insistes nas rezas para expiar o mal, vencer o bicho, crês que isso irá fazer-me presente eternamente. És fraco, depois da tua mãe fui eu quem lavou sempre as tuas camisas. Quando cheiras a lavado, é a mim, pelo meu trabalho, à água esfregada e ao sabão que deves o cheiro. Tudo detido, sem centro, consegues imaginar?, tenta. Um dia não estarei cá, vivê-lo-ás sozinho e não serás como Pigmalião, não verás vultos em que possas admitir vida ou sobre os quais possas projectar paixão. Um cadáver não é uma estátua. Se chorares, chorarás um fantasma que já não está e não quer estar aqui. Espero sinceramente que continues a ter camisas lavadas, passadas a ferro. Sinto que estou a enferrujar, a secar como barro, não sei que outro nome dar à morte ou à imitação dela antes dela. Talvez vida. Não sei, não sei.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria