2007-12-31

foto&legenda # 386 (à esquerda)

Dou uma atenção particular às coisas que posso perder. Para, perdendo-as, preservar o património possível da sua perda e tentar com mais amparo a direcção e o sentido que permitem continuar, sem ser em regime de perseguição.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-12-28

foto&legenda # hors-série (ми́ша кала́шников)

O tempo era o da imitação, da estrada mesma e única. Havia sombras sem luz, contrastes vindos não se sabe bem de onde e alguma precaução de cada um dos lados, para não apontarem-se os seus interditos. Era um tempo arrumado, de fim. A paz vinha em vinhetas e impunha-se. Era uma arrumação estranha, a que o hábito nos arrumou.
fotografia © João R. Santos
legenda © Sérgio Faria

2007-12-26

foto&legenda # hors-série (geração post marvel)

Depois da revolução veio o cansaço, não a derrota. Veio o enunciado exigente da realidade. Veio o som das portas a fechar, do correr dos ferrolhos, das fechaduras a trancarem. As noites tornaram-se iguais ao que eram antes. A última oração já a escrevemos na parede. A parede é a última janela. Foi o modo de render testemunho do que nunca vimos ou ouvimos. Já não há heróis. Então decidimos criar outros. E soltá-los da imaginação e do futuro que já não acontecia. Cansados, nós ficámos, continuámos a ficar. E a essa continuação chamámos vida.
fotografia © João R. Santos
legenda © Sérgio Faria

2007-12-24

foto&legenda # hors-série (chlapec)

Nasceu o menino. Rapaz. Dizem o unigénito. Deus deu-lhe o mundo para que pudesse aprender. Parece que, sem o mundo como recreio, não conseguia dar-lhe a lição. Deus é indirecto.
fotografia © João R. Santos
legenda © Sérgio Faria

2007-12-22

foto&legenda # 385 (a morte de uma noite de outono)

Pegou o bicho-pé e a máquina-óculos, estilo moderno, para andar e ver melhor. Como quem se aproxima da própria pele, acercou-se do valado e aí testemunhou o bacilo do solstício. Diante de si era já o inverno. A trincheira que tinha a missão de o segurar estava a ceder. Sentiu, nada havia a fazer. O contágio haveria de acontecer, o inverno propagar-se-ia, qualquer que fosse a sua acção ou a sua omissão. A natureza está sempre a compor o requiem das suas estações.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-12-21

foto&legenda # 384 (somehow you’ve red-rovered the gestapo circling my heart)

Quando eu disse que queria ser um power ranger, tu disseste que era preferível ter uma espada laser. Eu acreditei e fiquei diante de ti como disseste, pequeno e desarmado. Depois cresci, quis ser como o robocop e tu disseste que isso, ser cyborg, estava fora de moda. Uma vez mais baixei os olhos, encaixei as mãos nos bolsos das calças, já não dos calções - que entretanto tinham deixado de servir-me -, embora, então, ainda que fosse evidente a minha rendição, tivesse desejado resistir e reagir à tua soberania. Não consegui. Dos teus olhos vinha uma força que me vencia. Enganaste-me sempre com a tua coragem. Por isso deixei de olhar-te nos olhos e, fingindo o triunfo, deixei de contar-te os meus medos também. O que, agora, admito, é o modo como continuas a prender-me.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-12-19

foto&legenda # 383 (wacky races, ii)

Do mesmo modo que há uma escala das transumâncias, há uma escala das ilusões. Aliás, depois de deus, há quase tudo. Não por acaso, agora apenas a velocidade, a última propriedade divina, guarda o limite do que é possível. No momento em que conseguirmos ser ainda mais rápidos, no momento em que as máquinas permitirem ir além do limite do que é possível, deus será definitivamente ultrapassado. Este enunciado do avanço, deus por uma máquina, está quase consumado. Quando estiver, então, alcançaremos a condição de deus e o nosso nome. Deus ex machina.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-12-17

foto&legenda # 382 (wacky races, i)

Aprendemos que nos veículos de chão, os automóveis, como nos veículos alados, os aviões, os pneus comportam-se sempre como animais rastejantes. Mas depois vêm os malucos das máquinas voadoras e viram tudo do avesso.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-12-14

foto&legenda # 381 (suite de metais, ii)

Como uma febre, os sons repetem-se de modo sincopado, preenchendo o vazio entre os corpos. Se tivesse que classificar o caso, arriscaria ostinato. Em intervalos regulares, o sopro produz o mesmo corte áspero no silêncio, encontrando uma harmonia estranha e o ritmo que ela consente. Ainda faltam muitos degraus para atingir o patamar de Davis, mas, sente-se, tentando-se o sopro, acrescenta-se um espaço novo sobre o espaço, comprimindo a dimensão que os separa. No momento certo, cumprindo a cadência, o sopro produz simultaneamente o rasgo e a união. Os corpos sentem isso e embalam. É porque dançam.

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-12-12

foto&legenda # 380 (suite de metais, i)

A ordem é esta, primeiro o silêncio, depois a dança. É uma ordem como qualquer outra, que congrega ou aproxima os elementos. Mas não é eterna. A seguir a ordem dissipa-se e abre-se um vazio, para onde se precipita uma vaga de vibrações nova. Durante este processo, um novelo de sons atinge o sangue. A carne cora. Uma espécie de benção envolve-a. Ao mesmo tempo as sombras crescem e guardam os corpos sob a sua protecção. A luz traça golpes nos corpos. E, no plano onde, antes, o silêncio fermentava, o som transforma-se em jogo de gravidade. As órbitas que continuam, essas, são a necessidade feita pela dança.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-12-10

foto&legenda # 379 (o apocalipse de sansão)

A força da humanidade de um homem afere-se pela sua capacidade de derrubar os tempos templos em que o cativam.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-12-09

Foto&Legenda - II

Casa.
Escritório. pátio. Interior. exterior. Sombras. sol. Calor. frio.
Pedra. pedra. Flor. flor.
Vidro. janela.
Casa.

foto "caseira"
legenda Sérgio Ribeiro

2007-12-07

foto&legenda # 377 (a casa amarela)

À porta daquela casa havia um candeeiro para os cuidados. Depois do sol começava o inferno.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-12-06

Foto&Legenda de regresso e com título:________ Bem-aventurança

Retrato de gato com orelha revirada, um dentinho a espreitar, duas patas e meia, e de três dedos de mão de "dona" adormecida sobre o pêlo macio e quente. Tudo posto em sossego e tirando do viver o doce fruito.
foto "caseira"
legenda de Sérgio Ribeiro

2007-12-05

foto&legenda # 375 (dessedentar)

Um dos exemplos da soberania da espera é a espera dos copos, que, como virgens em repouso, esperam o seu motivo, para atenderem ao uso que as mãos lhe reclamam.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-12-03

foto&legenda # 374 (caderno do ditado da umbria)

Às voltas com o apagamento, ele segue os intervalos cortados da sombra, onde, pelos passos que conduz, descobre um caminho.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria