2018-04-19

foto&legenda # 544 (a solidão comunicada)


A vida tornou-se urgência. Salvo falha de rede ou falta de bateria - situações equivalentes à morte ou à quase morte -, a distância perdeu, conquistou-se a comunidade sem propinquidade. Aconteceu a utopia, os corpos e o espírito na mesma morada, uma morada nova e universal sem lugar, casa sem chão, paredes, tecto, porém casa cheia, uma residência permanente de todos. Já não existe nenhures, alguém lá. Agora é tudo aqui, excepto o resto. Não há passado ou futuro mesmo quando há. É estranho o que passa à volta. É estranho que aqui ainda haja à volta. Ser é estar. Somos a aplicação do instrumento que nos estaciona e permanece na dimensão espectral. Estar é estar-aqui. Tornámo-nos manipuladores do que a manipulação nos consente, vultos que estão, portanto que estão necessariamente aqui. Já ninguém pode estar-lá. Se alguém está lá, está apenas fisicamente. A coexistência vingou mais do que trágica, tornou-se compulsiva e superficial. Vive-se numa ontologia de écran que congrega mais do que as forças antigas - o amor, o poder, a verdade, o dinheiro - alguma vez foram capazes de congregar. Quase tudo o que se deseja ou pode tocar está aí - no écran aí é aqui -, na vida que deixou de ser nua e que, com alcance pronto, se segura na palma da mão. Tudo é imediato, contra o que há à volta, porque nada há à volta, fora do écran. Hoje «demora» e «distância» são conceitos velhos, analógicos. Tudo está aqui. Está-se bem. O que há à volta, que não há, não é mais do que um passepartout existencial. A solidão que subsiste é apenas a dos tristes, uma memória vaga, crescentemente vaga, a da tristeza que foi escrita em livros ou em canções. Ainda bem que, ao as pessoas se tornarem passageiras de si, tudo está melhor. Está aqui. Já não falta muito para que os espécimes refractários sejam reunidos em reservas zoológicas que possam ser visitadas por smartphone, beneficiando quem visita, sem presença, da assistência prestimosa e vocal de um algoritmo qualquer. Conheci a Janete quase assim.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

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