A sentença, que fosse encarcerado até ao cabo dos seus dias, foi proferida. Naquele juízo, não apenas naquele caso, não havia remissão das falhas e as penitências, todas, quaisquer que fossem, eram cumpridas sob arrecadação. Ao opróbrio da condenação inscrita em edital, afixado e publicitado na rua, juntava-se a pena da masmorra, longe da vista dos outros, mas não do seu conhecimento. Foi isso que lhe aconteceu. Para ali foi mandado, para, depois da morte pela vergonha, morrer quando e conforme a natureza lhe ditasse a expiração. Foram passando os dias, sendo rara a penumbra naquela cadeia. Valeu-lhe a piedade do tempo, que o aliviou de uma mortificação demorada. Entretanto, quando a treva se tornava ténue, ele entreteve-se a desenhar linhas, claves de sol e notas em folhas de papel pardo. Por esse exercício, enquanto resistiu entre os vivos, compôs uma peça de câmara, tentando transmitir, pela música, o mundo sentido a partir daquele lugar fechado. Em determinadas passagens da composição, à margem, acrescentou anotações, sugerindo o silêncio dos instrumentos e o acrescento de sons e ruídos que lhe iam fazendo a rotina da vida. O ranger da porta, a chiada dos seus eixos, a repercussão grave do encontro do ferrolho com o batente e o rodar seco dos trincos da fechadura foram-lhe suscitando a melodia e o ritmo com que essa melodia devia ser cadenciada. Na prática, foi metaforizando essas sensações em linguagem para concerto. Fez o derradeiro reparo na sua obra na véspera do seu último suspiro. Quando retiraram o seu cadáver da cela, encontraram um rolo composto por várias folhas, laçado por fio de sisal. Entregaram-no à viúva que, por sua vez, o entregou ao filho que, mais tarde, o legou ao seu único herdeiro. O título da peça, Lux in tenebris, estava riscado. Mas o neto, arrebatado pela peça escrita pelo seu avô e conhecedor do motivo por que havia ele padecido, passou a pauta a limpo e intitulou-a Ars moriendi.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria
legenda © Sérgio Faria
2 comentários:
Andava a pensar que este blog precisava, de vez em quando, de som.
Ora aqui está! Até já dispõe de um poema sinfónico, com uma fotografia em que se ouve o ranger de batentes, de ferro ferrugento em madeira carcomida.
O que isto me lembra... os meus fantasmas... em ópera|
fantasmas e pele de galinha... ó que mansos vocelências andam.
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