O Haiti é tão longe e falam francês lá, chorar o quê? Claro que a culpa é dos americanos, de quem haveria de ser? É sobretudo de Whitman, dele antes de qualquer outro, que morreu naquela aflição original de ser americano antes de os americanos serem quem são, que sofreu e soube louvar a culpa de ser assim desde o princípio. Mas, ainda o Haiti, eu não estou lá, não tenho amores ou contas de sangue ou simpatia lá, aquilo não é comigo, porquê fazer aquela tragédia comum?, vala de todos, inclusive minha. A mim basta-me a estranheza próxima, a esquina americana que foi inaugurada a semana passada na cidade que nunca saiu do estupor de ser vila, excepto na cobrança do parqueamento automóvel. Passei lá ontem ou anteontem, àquela esquina, e vi o corredor intrépido, como espectador diante de um ecrã, a olhar as voltas do tambor de uma máquina de secar roupa. Castigo divino, disse uma mulher que se aproximava da porta da lavandaria self-service, foi castigo divino. Coitada, ela não deve saber que os americanos existem. Admiti que ela tivesse os pés cansados, o calçado parecia desconfortável, e pensei na teoria da massagem aos pés contada em Pulp Fiction. Eu passei ali só para ir comprar o jornal e beber um café e, sem querer, tornei-me uma testemunha inoportuna. O número de mortos no Haiti contado em pés há-de ser mais aterrador, dobra a desgraça, faz julgar que os sobreviventes são menos. Andar, andar, shake dog shake. Larkin chamou à vida a quite unlosable game - escreveu-o num poema -, ainda que não à vida toda ou inteira. E eu, que tenho dificuldade em apontar o Haiti no mapa, sei que o mapa se chama planisfério mas não sei onde fica o Haiti, estou a conjecturar o que aquilo, aquilo das notícias, que vem nas notícias mas que é de lá, do Haiti, o que aquilo possa ter a ver comigo, com a mulher do deus punidor, com o Fabrício a olhar para a roupa a passar enrolada atrás do óculo de uma máquina de secar, com o senhor Manuel Cartuxo à porta da loja dele, com o senhor Joaquim sapateiro a trabalhar dentro da oficina no lado oposto à mercearia do senhor Manuel Cartuxo. Os pés, o que terão os pés dos haitianos a ver connosco? É verdade, na esquina americana, dentro da lavandaria, costuma estar um rapaz que fala com sotaque. Aposto que esteve em França e que aquilo, pôr um bocadinho da américa ali na praça, de onde se vê a igreja, o café central, tudo mais concreto do que o Haiti, é o negócio dele. Claro que a culpa é dos americanos, a mulher nada sabe sobre o assunto. Carregava um cesto com roupa, para lavar ou secar, não sei. O deus que castigou os haitianos não tem tempo para tratar da roupa da mulher. Agora nem as orações nem os voodus lhes valem. Embora não saiba da culpa dos americanos, a mulher é capaz de ter razão. Dificilmente as orações chegarão ao Haiti a tempo de salvar alguém. Andar, andar, é para isso que servem os pés. Porém o Haiti é tão lá longe e eu passei naquela esquina só para ir comprar o jornal e beber um café. Na capa do jornal vinha uma fotografia do Haiti.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria