O capítulo das azedasLevado em périplos fantásticos, Samuel já conhecera lugares habitados por gente minúscula, por gigantes, por cavalos que falavam e por yahoos. Conhecera também os chãos das Índias do lado do levante, os estranhos costumes e modos dos habitantes daí e as criaturas exóticas da fauna autóctone. Mas, correspondendo ao seu anseio indómito, uma vez mais ele decidiu aventurar-se pelos mares, prometendo, no entanto, antes que levantasse a âncora, que aquela seria a sua última viagem. Depois do regresso, abdicaria do perfume da gávea e recolher-se-ia na sua eira. Esta foi, à partida, a intenção que manifestou.
Não muitos dias havia de mareio - treze eram esses dias - quando desapareceram do camarote de Samuel todos os instrumentos de orientação da navegação, incluindo a carta de mares e o sextante. Foi sob essas condições que, no dia seguinte, a tripulação teve que enfrentar uma procela. Vagas enormes abateram-se violentamente sobre ambos os bordos do navio. As madeiras cederam, como se fossem ripas. O mastro tombou, cerce, sob a inclemência da água e das rajadas de vento. O barco soçobrou, sem ter havido tempo para arrear os batéis. Aconteceu o naufrágio, em mar cavado, animado por fúrias que alguém jamais testemunhou.
Sendo incógnita a rota que seguiam, por presumirem-se longe de qualquer beira de terra, todos admitiram o fim. Com a excepção de Samuel, resgatado pela fortuna de uma corrente que o entregou a uma ilha, todos os demais elementos da tripulação, desde o mais inocente mancebo até ao irascível cabo, pereceram por afogamento, ficando, sem mortalha, naquele vasto túmulo marítimo.
Empurrado pelas ondas, o corpo de Samuel enrolou-se na areia do bojo setentrional da tal ilha. Após algum tempo, ele recuperou a consciência e, fraco, arrastou-se para além do alcance da rebentação, protegendo-se à sombra da única rocha que pontificava naquela praia. Passado o período de maior impiedade do sol, Samuel decidiu avançar para o interior da ilha, em busca de água e de algo que lhe servisse de alimento. Ultrapassado um anel de densa vegetação, deparou-se com uma clareira. Parecia um imenso tapete de flores amarelas. Ali não se ouvia qualquer animal. Era um silêncio ímpar, cortado apenas por sopros leves de vento que, ocasionalmente, por ali corriam e pelo murmurar aquoso, do jogo entre as pedras, de um riacho cristalino. O panorama diante de si era paradisíaco.
Ainda exausto, Samuel sentou-se no limite da clareira, tomando como respaldo uma árvore. Mastigou demoradamente o que colhera durante a caminhada até ali e que lhe pareceu ser um fruto, embora fosse amaro. Depois levantou-se e caminhou até à corrente de água, onde saciou a sede. Ligeiramente tonificado, mas ainda sem sentir o recobro, Samuel, de braços abertos, deixou-se cair naquele campo florido, como se estivesse a deitar-se num leito confortável. Foi então que, naquela posição e em estado de vigília, começou a ouvir um rumor. Ergueu a cabeça, fechou e tornou a abrir os olhos, sondou o redor, mas nada viu. Ao mesmo tempo que erguera a cabeça, o bazar de vozes pareceu-lhe dissipar-se. Tornou ao sossego. Pouco depois, voltou o tal murmúrio. Uma vez mais investigou, tentou verificar se havia ali mais alguém para além dele. Porém, nada, sequer um vulto, vislumbrou. Como antes, pareceu-lhe que, com o movimento de levantar e deitar a cabeça, o murmúrio tinha ido e voltado. Vergado pelo cansaço e embalado pela melopeia que resultava do sortido de pequenas e vagas vozes que ele ia escutando cada mais apagadas, o sono começou a triunfar-lhe. Adormeceu profundamente.
Quando acordou, pareceu-lhe observar em seu torno uma concentração de flores amarelas superior à que existia antes de ter adormecido. Na ocasião admitiu que essa sensação fosse ilusória. Nada lhe permitiu suspeitar que o motivo do caso fosse diferente de mera impressão. Sobre a ilha abatia-se o crepúsculo, mas o amarelo daquela clareira, vivicado, ainda resplandecia, como se fosse outro sol. Foi quando as flores recolheram as suas pétalas, como se as arregaçassem, abriram a boca e o começaram a morder. Dormente, Samuel não logrou escapar àquele florilégio que o mandibulava com ferocidade. Dele sobraram apenas os ossos, não as cartilagens, duros demais para os dentes daquelas flores pequenas.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Eliz B.