2006-04-29

Agenda

Quatro fotografia do Nuno a pedir legenda. O rapaz das legendas não consegue corresponder. Indolência. Insiste, insiste e nada. Rien. Nem com inspiração nem com transpiração. O engenho, quando não há, também não ajuda. Mas as fotografias não têm que esperar. Por isso, ficam já aqui expostas. Oportunamente aparecerão palavras arrumadas a elas, palavras a tentarem não cair, palavras. O rapaz das legendas vai ali e já volta. E fica também à espera que a Eliz B. remeta os capítulos dos casos silvestres em falta. Como na canção, addio, adieu, auf Wiedersehen, goodbye. Isto é, inté.


foto&legenda # ípsilon
A senhora da noite


foto&legenda # xis
A luz, lugar de princípio e de fim



foto&legenda # o livro dos casos silvestres, iv
O capítulo dos malmequeres



foto&legenda # o livro dos casos silvestres, ii
O capítulo dos amores-perfeitos

2006-04-28

FOTOLEGENDA -24


De novo (e sempre) dois homens a conversar.
Falam. De quê?
De novo (e sempre), não importa. Falam.
Se em desacordo, falam. Isso é que é importante. Que falem.
Talvez encontrem o ponto de acordo. Talvez…
Se não falarem, não haverá ponte, são margens.
Não haverá arquipélago, são ilhas.
Não serão 2 homens, são 1 homem e 1 homem!


foto de Pedro Gonçalves

legenda de Sérgio Ribeiro

FOTOLEGENDA - 23

A nuvem
prenhe de água
é esperança
e é ameaça.
As muitas cores
da primavera nasceram
e floresceram com
a chuva-esperança
e esperamos que
a chuva-ameaça
não venha transformar
em lama e charco, lago que fosse…,
só azul,
o que era
(também) azul, amarelo,
verde, vermelho.

foto de Nuno Abreu

legenda de Sérgio Ribeiro

FOTOLEGENDA - 22


Sobreposições.
A soma diferente das parcelas.
O conjunto inigual à junção das partes.
O acto criativo por sobrepor o que era
e que, por isso, passou a ser outra coisa.
Nova!

foto de Pedro Gonçalves

legenda de Sérgio Ribeiro



FOTOLEGENDA - 21


A perfeição.
No momento. No instante. No instantâneo.
A cor. O branco de asas sobre o azul de mar.
O equilíbrio. O espaço. A tranquilidade agarrada no tempo.
A perfeição.
Porque ausente de humana perturbação? Não!
Foi o olhar. Foi a máquina com séculos de aperfeiçoamento que serviu a sensibilidade capaz de captar a perfeição.
No instantâneo, no instante, no momento.
Só que.
Só que o branco das asas se fecha no sobrevivente mergulho para a pesca do peixe.
Só que o azul tantas vezes perde a tranquila serenidade
e se agita e se revolve e se revolta
até ao desastre, à catástrofe, ao caos.
Só que a vida é como o mundo do poeta. Feita de mudança.

Porque a vida não é (apenas!) a perfeição do momento,
do instante, do instantâneo.
A perfeição é humana invenção na procura do que não é
e que queríamos que fosse.
E por isso é!

foto de Nuno Abreu

legenda de Sérgio Ribeiro

FOTOLEGENDA - 20


Dois homens. E cravos vermelhos.
Num dia: 25 de Abril de 2006. 32 anos depois de.
Para um, 32 anos foi ontem, que homem feito era e preso estava;
para outro, foi muito, muito longe no tempo, que menino era.
Um, à direita; outro, à esquerda.
Mas podem mudar-se os lugares sem que eles mudem. Ou pode o fotógrafo, por artes e manhas da técnica, pô-los em posições relativas inversas, o da direita à esquerda do da esquerda, o da esquerda à direita do da direita. Não importa. Importa, sim, que um é crente por devoção e tradição, e o outro ateu por convicção e assumpção. Mas os dois têm a mesma fé: a boa. A que os leva a conversar. Com cravos por testemunha e uma fotografia como prova.
A conversar como amigos. O que pode ser o começo de uma amizade como dizia o Humphy ao Claude em “Casablanca”. Não viram? Não percam!

foto de Nuno Abreu
leganda de Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 44


A dignidade é o que jaz na suficiência do corpo, O que levas na alcofa?, ó homem, suficiência que é o corpo em caminho, a regressar do mercado, o que levas na alcofa?, medida justa de si e da fome o que levas?, e perante a qual há uma pergunta mais urgente do que as outras, Quem és tu?, ó homem, porque esse corpo é o nosso corpo, o corpo entregue por nós, o corpo da nossa identidade, quem és tu? e quem sou eu?, suporte e reflexo do que somos e do que podemos ser, Quem somos nós?, e porque somos, uns e outros, uns para outros, o espelho onde nos encontramos e descobrimos, somos nós, onde nos proporcionamos e ajustamos ao passo.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-26

foto&legenda # 43

Conforme o costume, pela boca morre o peixe que orneja porque a sua voz não chega ao céu.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Ségio Faria

2006-04-24

foto&legenda # 42

Às vezes, mesmo quando o tempo da vez dura, canta-se sobre o que prende, porque a melodia da liberdade pende mais.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 41

A glória nas alturas e a ascensão aí acontece a quem cai menos vezes pelo caminho.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-23

LEGENDAFOTO - 8

A bola rola. De stick para stick.
Rola a bola. À frente. Para trás.
Circula. Circula. De stick para stick.
Faz-se a teia. O enleio.
Rápido. Rápido. Logo logo abranda o ritmo.
De stick para stick.
A bola rola. Rola a bola.
Circula. Roda que roda. Envolvendo.
À procura de uma abertura. De uma brecha.
Enleando. Tricotando.
De repente, a fresta.
A brecha.
Como uma flecha, a bola corta o ar.
Rasga e traça um caminho.
Até ao stick do “puto do hóquei”.
Que a encaminha, em gesto certo e certeiro, para a baliza.

Goooolo do JO!

Golo de um “puto do hóquei” já a jogar com os graúdos…
... e eu (e mais aí uma centena e meia de oureenses…) “feliz da vida”!

(foto "inventada" por Sérgio Ribeiro para uma sua legenda)

2006-04-22

foto&legenda # 40


Vou, vou pelos meus passos, pelos meus passos exactos, exactos sem vertigem, sem vertigem vou. Vou, vou para diante, para diante caminho, caminho sozinho, sozinho vou. Vou, vou como quem anda, como quem anda para a frente, para a frente e por vontade, e por vontade vou. Vou, vou e avanço, e avanço contra ti, contra ti porque não te vejo, porque não te vejo vou. Vou, vou para aí, para aí onde estás, onde estás em guarda, em guarda vou. Vou, vou sem destino, sem destino como lugar, como lugar para quem deixo as costas, para quem deixo as costas vou. Vou, vou e continuo a ir, e continuo a ir a pisar a estrada, a pisar a estrada e a ser rasto, e a ser rasto vou. Vou, vou sem ir, sem ir porque volto, porque volto quando regresso, quando regresso vou. Vou, vou princípio, princípio e fim, e fim como no princípio, como no princípio vou.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

legenda&foto # 12

A água acama-se, mesmo quando em vaga encrespada contra a costa, como se se escrevesse sobre si mesma, palimpsesto, e arrastasse o seu corpo num desafio constante, crescendo marés e mar salgado, em que assenta testemunho, mas não vigia. Esta é a borda do meu jardim, de onde vejo o oceano e onde me convoca a sensação de ser el ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha perante moinhos de vento. Mas, enquanto ele via gigantes ameaçadores e contra tais gigantes investia, eu vejo flores de aço com três pétalas, gira-ventos, às quais me concedo quieto, para melhor me sentir pequeno.

legenda © Sérgio Faria
fotografia © Nuno Abreu

2006-04-19

foto&legenda # hors-série


o caminho dos noctâmbulos. perante o destino auschwitz-birkenau, onde muitos dos dias foram de cinzas, a memória é o retorno do fim.
fotografia © autor desconhecido
legenda © 3ás

Nunca somos apenas a paz. Que não nos falte a consciência e a memória disso.
Captei este post e reproduzi-o aqui para recordar a matança da pascoela, o pogrom de Lisboa, acontecido há 500 anos. Porque, defendo como outros, os dias da infâmia devem ser recordados, para que, pelo esquecimento, não se reedite a besta que nos habita.
Para mais pormenores, vide o blog Rua da Judiaria.

2006-04-18

foto&legenda # o livro dos casos silvestres, iii

O capítulo das papoilas


Sem qualquer indício que permitisse prever o caso, o naipe de espadas e o naipe de copas começaram a lutar entre si no salão de baile. Por ter sido grande o entusiasmo investido no combate, resultou que algumas das cartas foram mortas e, consequentemente, retiradas do baralho. Naquele momento, porque não gostava de guerras, Alice decidiu regressar. Saiu do salão sem que ninguém a visse e correu.
Durante a fuga, antes da colina, deteve-se apenas por um instante. Alice queria despedir-se das flores que conhecera antes e com quem conversara, mas, aflita, desejosa de sair dali, não conseguia descobrir onde estava agora o seu jardim. Desviou a corrida, no sentido da colina, por saber que era do outro lado que estava a casa com o espelho que necessitava de atravessar para consumar o seu regresso. E continuou em passo acelerado. Viu veados.
Quando passou o topo da colina e começou a descer, Alice espantou-se com o campo de papoilas que se revelou diante de si. Eram papoilas enormes, muitas da altura dela. Recomposta do espanto e recobrado algum do seu fôlego, Alice tentou dialogar com as flores. Nenhuma respondeu. Aquelas papoilas não eram como as flores do jardim. As flores do jardim eram cultivadas, cuidadas por mãos e ofícios de jardineiro, e sabiam falar. Aquelas papoilas eram flores silvestres, selvagens, e não falavam.
Com o fôlego ainda fraco, Alice avançou a passo no sentido da casa que já vislumbrava, continuando a deslumbrar-se com as flores e o seu tamanho. Ultrapassado o extenso campo das papoilas, quando começou a pisar o chão de seixo pequeno que antecipava a porta da casa, Alice parou novamente. Decidiu colher uma daquelas papoilas gigantes e levá-la para o outro lado, para a mostrar a quem lhe queria bem e de quem sentia tanta falta. Assim fez. E seguiu.
Depois de entrar na casa, Alice aproximou-se do espelho. Este, com sono, começou a bocejar. Alice sorriu. Nunca tinha visto um espelho a fazer como os gatos, acabados de sair do torpor da preguiça. Por instantes, a imagem do seu reflexo distorceu-se, o que lhe pareceu ser a antecipação da névoa que lhe permitiria atravessar para o outro lado. Por isso deu mais dois passos. Porém, quando se preparava para dar o terceiro passo, Alice foi obrigada a deter-se.
Depois do bocejo, o espelho adormecera profundamente, desequilibrara-se e tombara sobre o chão, estilhaçando-se. Através daqueles estilhaços Alice não podia regressar. Nenhum dos pedaços era suficientemente grande para ela poder passar para o outro lado. Pelo que ficou fechada no lado de lá.
Entretanto, antes que pudesse começar a preocupar-se, Alice apercebeu-se que os veados que vira antes haviam entrado também na casa. Famintos, foram conduzidos ali pelo seu olfacto. Cheirava-lhes a carne fresca, de menina. Comeram-na e comeram também a papoila.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Eliz B.

foto&legenda # 39

Houve um lugar onde os seus habitantes julgaram ser capazes de suster o tempo. Acreditavam que, caso se fechassem em casa ou andassem na rua sempre com as mãos nos bolsos, a velhice não conseguiria agarrá-los e, na sua colheita certa, levaria apenas gente de outros lugares. Um dia, porém, uma casa daquele lugar ficou fantasma subitamente, por ter morrido o velho que lá morava. Os outros, ora fechando-se em casa ora andando na rua sempre com as mãos nos bolsos, continuaram a fingir que não tinham idade. E com essa ilusão conseguiram viver até que.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-16

FOTOLEGENDA - 19


Num destes dias, lá para os lados dos Castelos, andava o fotógrafo a fotografar passarada. Pensava ele que andava por ali sozinho mas, de repente, apareceu-lhe uma bicicleta e um sujeito agarrado a ela.
Ora… que faz um fotógrafo quando anda a fotografar passarada e apanha pela frente a surpresa de um homem agarrado a uma bicicleta (ou vice-versa)?
Fotografa:

E, depois, o cromo que fotografou manda a foto para outro cromo para que este encontre palavras que legendem o momento.
Que se desenrasque…


Mas as palavras estão lá, na fotografia e no que já foi dito/escrito. Porque nada se diz/escreve sem palavras.
Fotógrafo, passarada, Castelos, surpresa, bicicleta, homem.
Amizade. Foto&Legenda.

Olhó passarinho… e aparece um passarão! Pronto, já está!
Palavras? O homem e a sua bicicleta ou a bicicleta e o seu homem… Pronto, já está!



o "cromo" (a expressão é dele…) que fotografou é o Pedro Gonçalves
o "outro cromo", que completou a legenda, é o Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 37


Uma das representações sublimes da ascensão, a maior comunhão dos símbolos, mostra uma mulher dormente entre maçãs, guardada por um véu ténue.
imagem © Lars Von Trier
legenda © Sérgio Faria

2006-04-15

FOTOLEGENDA - hors-série


«(…)
Chegados à Capela de S. Sebastião, desmontámos e fizemos uma pequena pausa para retemperar forças e dar algum descanso às montadas.
Para marcar a passagem resolvemos ir tomar um aperitivo ao amigo "Chico de S. Amaro" que, mal descobriu que estávamos a cavalo, fez questão de não nos deixar pagar as bebidas, e de nos presentear com algumas histórias que passo a transcrever:
-Os senhores pararam no sítio certo e estão na casa certa! Comentou o Sr. Chico.
-Sabem que era aqui, nesta casa, que paravam as carroças que faziam o transporte dos peregrinos da estação de Vale dos Ovos para Fátima, nos primeiros anos, logo a seguir às aparições?
Era aqui que paravam para descansar um pouco e para dar umas favas aos animais pois a viagem era longa e difícil.
O meu pai, continuou o Sr. Chico, também teve uma dessas carroças que transportavam oito pessoas adultas, e fez durante algum tempo essa vida de "taxista".
Este era o único local onde descansavam durante a viagem e era de paragem obrigatória.
Por isso estou muito contente por verificar que a História se repete e só tenho pena de não ter umas favas para dar aos cavalos mas, as bebidas, essas pago eu!
E já agora, sabem que o caminho por onde chegaram à Capela era a antiga "Estrada dos Almocreves"?
Perante o nosso encolher de ombros, e por saber que eu sou um entusiasta desse tipo de conhecimentos, aconselhou-me a falar com o meu colega e amigo Dr. José Ferraz pois concerteza iria ficar admirado com as coisas que este me iria contar sobre o local.
É sem dúvida um grande entusiasta e apaixonado por tudo quanto diga respeito ao seu "cantinho", o amigo Chico de S. Amaro. Mais houvesse como ele e, certamente, os valores e o património histórico desta terra não andariam pelas ruas da amargura como vai acontecendo.
À laia de despedida, demos uma pequena boleia à netinha do Sr. Chico, que ficou radiante e até tirou fotografias, e rumamos pelo mesmo caminho em direcção ao Vilar, mas agora com mais calma porque é sempre a subir (e de que maneira), e os cavalos são precisos para outros passeios... e não só!»
(do blog Ourém e não só,
de Sérgio Poupado,
6 de Novembro de 2005)
(Já tantas e tão grandes
saudades de um amigo!
pelas cópias, Sérgio Ribeiro)

foto&legenda # 36

Quando se diz lux mundi, esta iluminação, em assento moderno, é aquela em que se crê, a harmonia entre as luzes e o seu movimento - ascendente ou descendente -, a mesma harmonia que se procura entre as vozes, os actos e os sentidos.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-14

foto&legenda # 35

Não é em todas as circunstâncias que a suspensão, mesmo aquela que é testemunhada pelos olhos, cauciona a elevação do corpo. Casos há em que a suspensão apenas sustém o corpo, tornando necessária, depois, a sua remoção por mãos que lhe são estranhas e vivas.
fotografia © Jan Saudek
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 34

A suspensão é uma das condições que permite furtar qualquer corpo ao efeito de gravidade e elevá-lo a um plano etéreo. Porém, há corpos, os corpos telúricos, que mais facilmente se destacam do chão e superiorizam através do apoio.
fotografia © Robert e Shana ParkeHarrison
legenda © Sérgio Faria

2006-04-13

foto&legenda # 33

Há mistérios estranhos, o pão como carne, o vinho como sangue, a ressurreição, que nos vigiam e concordam.
fotografia © Marithé e François Girbaud
legenda © Sérgio Faria
fotografia © William Henry Fox Talbot, The Open Door, 1844


Manifesto a quem não digo

É importante não iludir a improbabilidade do que acontece como sociedade, entre duas ou mais pessoas. Porque a vida cicatriza-se numa certa ordem que não há. Mesmo quando o (a)caso da vida é o amor.
Para sempre? Pouco é o que é, se for, para sempre. E o amor não é desse pouco. Poderá haver amor que seja para sempre. Mas, mesmo esse, é um amor, amor até que. Claro que há amor para sempre. Em determinados momentos suspende-se um fulgor, um incêndio e, nesse mesmo instante, eterniza-se a sua labareda. Porém, cedo ou tarde, como acontece com os iogurtes, embate num limite, esmorece, cessa. Em última instância como consequência da morte. Mas muitas vezes antes dessa consequência. Sabe-se isso, sabe-se lá porquê.
Ao mesmo tempo que uns entoam o refrão everlasting love, outros repetem love will tear us apart. Às vezes uns são os outros e vice-versa, os mesmos, em tempos diferentes. Na prática, em cada um de nós tende a conjugar-se o título de um filme, Dr. Strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb, e a letra de uma canção, Because if it’s not love
then it’s the bomb, the bomb, the bomb,
the bomb, the bomb, the bomb, the bomb
that will bring us together. Não há qualquer certeza nisto. Tragédia também não. É mera conjectura.

O que se sabe é que por cada fim há uma continuação. Por cada princípio há um regresso. Assim justa a vida, passos e não caminho. Porque a vida é como uma porta, abre e fecha, une e separa, integra e distingue, relaciona e afasta. Daí que, em caso de dúvida, tão justo quão doloroso, seja de admitir a porta aberta, hipótese do que entra e do que sai. É que, no trânsito vital, há desencontro, encontro, recontro e reencontro, andanças a acontecer contra e sobre a vi(d)a única. Ou seja, a porta, fronteira, aberta é um modo de alguém crescer e doer consigo. E com os outros.

2006-04-12

foto&legenda # 32

A lua vai e volta, levando e devolvendo a noite, sombra no sentido da qual se inclina, porquanto é a sua própria inclinação que sombreia. A lua é um balancé celeste, que modula a luz das diferentes horas. Vai e volta, guia de preces e maestro de marés. A lua vai regime de alma e volta sentinela. Vai e volta, princípio eterno, claro, sempre a mostrar a mesma face. A lua vai e volta e, com ela, nós vamos e voltamos, mesmo quando julgamos ficar, nocturnos, acordados, a olhar um papagaio, esfera de prata. Porque a lua, satélite numinoso, sphera infinita cuius centrum est ubique, vai e volta apenas como ilusão. A noite não.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-11

FOTOLEGENDA - hors-série


O tempo que vivemos, e as circunstâncias que somos, fazem e desfazem rotinas.
Algumas dessas rotinas são tão desejadas, são tão queridas que, ao construi-las, as tomamos por definitivas, como se fosse eterno o que é efémero... ainda que possa durar para sempre. Enquanto.
Depois, depois o tempo (es)corre, as circunstâncias mudam, e nós mudamos com o tempo e com as circunstâncias.
E, ao descontruirmos rotinas, algumas…, sentimo-nos perdidos, sem perspectivas, sem futuro, como se estivéssemos em risco de perder a vida e não as rotinas.
Mas estas não são a vida, mesmo as que mais desejámos, as que mais queríamos, as mais realizadas. São de um tempo que passa. De umas circunstâncias que mudam. Mudando-nos.

A vida continua. Começa de novo. Sempre.

Zeferino

2006-04-10

foto&legenda # hors-série

capítulos de uma sequência quaresmal

exercício sumular de imagens de jejum - capturadas aos filmes cat on a hot tin roof, un chien andalou, belle de jour e viridiana -, por o marquês.

foto&legenda # 31

Na despedida houve um momento de hesitação. Da habitação guardou a porta, o diafragma que, sem ferir a parede, permitia o trânsito dos corpos entre o interior e o exterior. As mãos afastaram-se lentamente dela, a última peça a ser tocada, como se demorassem o afago da madeira. Para trás, para ser fantasma, ficou a casa. Mas é um engano julgar-se que, após a porta fechada, nada aconteceu no seu interior. Aconteceu a decadência, embora sem que tenha sido testemunhada a trama que denuncia aí a ausência dos corpos. Pelo que atrás da porta acumulou-se mais do que o esquecimento. Viveu o abandono.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-09

FOTO&LEGENDA - 18

QUANDO UM HOMEM
TEM DE TER TRÊS METROS DE ALTURA

Desde que os meus documentos de identidade incluem dados antropométricos, isto é, desde que os serviços respectivos e responsáveis entenderam que eu atingira a estabilidade (provisória) em altura, sou obrigado a achar que tenho um metro e setenta e três centímetros.
Agora, tropeço nesta ficha da PIDE, com data de 18 de Abril de 1974, data da última (!) prisão, e vejo que a minha altura é de um metro e setenta e quatro. Terei crescido um centímetro face aos esbirros!
Bom sinal.
Do “estúdio” onde me fotografaram e mediram passei para a cela da prisão de Caxias e fiquei à espera.
De quê?
Da “ida à polícia”, dos interrogatórios, da tortura. Sem saber que tinha mais um centímetro! A caminho dos 3 metros de altura de que precisava!
Mas veio o dia 25 de Abril de 1974. E foram os portugueses que ganharam (não definitivamente) essa altura.
Há 32 anos.

divertimento em dó menor

Um dos tons da glória, que é o tamanho xl sobre o tempo e para além do tempo, é aquele que foi consagrado pelas antropometrias de Klein.

2006-04-08

foto&legenda # hors-série


fala-me de saturno, na casa dos anéis fala-me do mistério que sabes reservado nesse santuário, habita um pastor de luas, fala-me de tudo que as guarda, e de todas as regras que tramam o céu. laçando-as com órbitas.
fotografia © nasa
legenda © serôdio d’o.

2006-04-05

FOTO&LEGENDA - 17

(foto de Pedro Gonçalves)

Que cidade? Que pintor? Porquê?

A cidade, que ibérica logo me pareceu, foi identificada: Toledo (por que outras cidades irá andar a fotografar este Dom Pedro de la Mancha e Castela-a-Nova, talvez, em breve, por africanas paragens?!)
O pintor sabe lá a gente quem será… Porque quem fotografou não quis saber. Porque quem fotografou apenas quis guardar o momento da contemplação/hesitação. Do homem perante a pedra e o que os homens, durante séculos, dela fizeram, moldando-a ao seu habitar, fazendo-a sua cidade.
Agora, será a vez da côr num pequeno rectângulo guardar o que este homem olha, vê. O que, de tanto tempo de homens, este homem quer seu. E (talvez) mostrar: “vêem como eu vi Toledo, naquele dia, àquela hora, e dela fiz minha obra?”
Por isso, hesita. Como, em gestos seus, em cores por si escolhidas, representar todo este trabalho de séculos e séculos? Que seu também é. E só seu será naquele rectângulo de tela. Enquanto não o der a outros…

(legenda de Sérgio Ribeiro)

legenda&foto # 11

Muitos dias são pêndulo, com ida e torna a este chão de partida. Aquele dia foi assim também, têmpera de rotina. O inverno resistia, a primavera falhava. A chuva crepitava contra o asfalto, fechando o horizonte num halo nebuloso, apertando o escopo do movimento de devolução da cápsula. Ao rasgar esse halo quase boreal, a cápsula, como um alazão de ferro, avançava num desafio de perda constante. O ritmo, embora de transgressão, não era suficiente para conquistar a frente. A cápsula deslizava por aquele corredor, comandada desde dentro. O horizonte baço apertava-se ainda mais no momento das ultrapassagens. Mas era pelas ultrapassagens que se ia removendo a distância à aproximação. Os outros ficavam para trás. E, à medida que ia aumentando o afastamento em relação a eles, o feixe dos faróis das suas cápsulas ia-se diluindo no retrovisor e perdendo a definição de perseguição. Entretanto, aproximando-se a chegada, há um custo a suportar por se ter corrido naquele corredor. O preço da volta, 6,65 €, é semelhante ao preço da fuga. Não discuto, mas peço recibo. Para confirmar que o regresso é um modo de destino pago.

legenda © Sérgio Faria
fotografia © Nuno Abreu

2006-04-04

foto&legenda # o livro dos casos silvestres, i

O capítulo das azedas


Levado em périplos fantásticos, Samuel já conhecera lugares habitados por gente minúscula, por gigantes, por cavalos que falavam e por yahoos. Conhecera também os chãos das Índias do lado do levante, os estranhos costumes e modos dos habitantes daí e as criaturas exóticas da fauna autóctone. Mas, correspondendo ao seu anseio indómito, uma vez mais ele decidiu aventurar-se pelos mares, prometendo, no entanto, antes que levantasse a âncora, que aquela seria a sua última viagem. Depois do regresso, abdicaria do perfume da gávea e recolher-se-ia na sua eira. Esta foi, à partida, a intenção que manifestou.
Não muitos dias havia de mareio - treze eram esses dias - quando desapareceram do camarote de Samuel todos os instrumentos de orientação da navegação, incluindo a carta de mares e o sextante. Foi sob essas condições que, no dia seguinte, a tripulação teve que enfrentar uma procela. Vagas enormes abateram-se violentamente sobre ambos os bordos do navio. As madeiras cederam, como se fossem ripas. O mastro tombou, cerce, sob a inclemência da água e das rajadas de vento. O barco soçobrou, sem ter havido tempo para arrear os batéis. Aconteceu o naufrágio, em mar cavado, animado por fúrias que alguém jamais testemunhou.
Sendo incógnita a rota que seguiam, por presumirem-se longe de qualquer beira de terra, todos admitiram o fim. Com a excepção de Samuel, resgatado pela fortuna de uma corrente que o entregou a uma ilha, todos os demais elementos da tripulação, desde o mais inocente mancebo até ao irascível cabo, pereceram por afogamento, ficando, sem mortalha, naquele vasto túmulo marítimo.
Empurrado pelas ondas, o corpo de Samuel enrolou-se na areia do bojo setentrional da tal ilha. Após algum tempo, ele recuperou a consciência e, fraco, arrastou-se para além do alcance da rebentação, protegendo-se à sombra da única rocha que pontificava naquela praia. Passado o período de maior impiedade do sol, Samuel decidiu avançar para o interior da ilha, em busca de água e de algo que lhe servisse de alimento. Ultrapassado um anel de densa vegetação, deparou-se com uma clareira. Parecia um imenso tapete de flores amarelas. Ali não se ouvia qualquer animal. Era um silêncio ímpar, cortado apenas por sopros leves de vento que, ocasionalmente, por ali corriam e pelo murmurar aquoso, do jogo entre as pedras, de um riacho cristalino. O panorama diante de si era paradisíaco.
Ainda exausto, Samuel sentou-se no limite da clareira, tomando como respaldo uma árvore. Mastigou demoradamente o que colhera durante a caminhada até ali e que lhe pareceu ser um fruto, embora fosse amaro. Depois levantou-se e caminhou até à corrente de água, onde saciou a sede. Ligeiramente tonificado, mas ainda sem sentir o recobro, Samuel, de braços abertos, deixou-se cair naquele campo florido, como se estivesse a deitar-se num leito confortável. Foi então que, naquela posição e em estado de vigília, começou a ouvir um rumor. Ergueu a cabeça, fechou e tornou a abrir os olhos, sondou o redor, mas nada viu. Ao mesmo tempo que erguera a cabeça, o bazar de vozes pareceu-lhe dissipar-se. Tornou ao sossego. Pouco depois, voltou o tal murmúrio. Uma vez mais investigou, tentou verificar se havia ali mais alguém para além dele. Porém, nada, sequer um vulto, vislumbrou. Como antes, pareceu-lhe que, com o movimento de levantar e deitar a cabeça, o murmúrio tinha ido e voltado. Vergado pelo cansaço e embalado pela melopeia que resultava do sortido de pequenas e vagas vozes que ele ia escutando cada mais apagadas, o sono começou a triunfar-lhe. Adormeceu profundamente.
Quando acordou, pareceu-lhe observar em seu torno uma concentração de flores amarelas superior à que existia antes de ter adormecido. Na ocasião admitiu que essa sensação fosse ilusória. Nada lhe permitiu suspeitar que o motivo do caso fosse diferente de mera impressão. Sobre a ilha abatia-se o crepúsculo, mas o amarelo daquela clareira, vivicado, ainda resplandecia, como se fosse outro sol. Foi quando as flores recolheram as suas pétalas, como se as arregaçassem, abriram a boca e o começaram a morder. Dormente, Samuel não logrou escapar àquele florilégio que o mandibulava com ferocidade. Dele sobraram apenas os ossos, não as cartilagens, duros demais para os dentes daquelas flores pequenas.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Eliz B.

2006-04-03

foto&legenda # 28

A sentença, que fosse encarcerado até ao cabo dos seus dias, foi proferida. Naquele juízo, não apenas naquele caso, não havia remissão das falhas e as penitências, todas, quaisquer que fossem, eram cumpridas sob arrecadação. Ao opróbrio da condenação inscrita em edital, afixado e publicitado na rua, juntava-se a pena da masmorra, longe da vista dos outros, mas não do seu conhecimento. Foi isso que lhe aconteceu. Para ali foi mandado, para, depois da morte pela vergonha, morrer quando e conforme a natureza lhe ditasse a expiração. Foram passando os dias, sendo rara a penumbra naquela cadeia. Valeu-lhe a piedade do tempo, que o aliviou de uma mortificação demorada. Entretanto, quando a treva se tornava ténue, ele entreteve-se a desenhar linhas, claves de sol e notas em folhas de papel pardo. Por esse exercício, enquanto resistiu entre os vivos, compôs uma peça de câmara, tentando transmitir, pela música, o mundo sentido a partir daquele lugar fechado. Em determinadas passagens da composição, à margem, acrescentou anotações, sugerindo o silêncio dos instrumentos e o acrescento de sons e ruídos que lhe iam fazendo a rotina da vida. O ranger da porta, a chiada dos seus eixos, a repercussão grave do encontro do ferrolho com o batente e o rodar seco dos trincos da fechadura foram-lhe suscitando a melodia e o ritmo com que essa melodia devia ser cadenciada. Na prática, foi metaforizando essas sensações em linguagem para concerto. Fez o derradeiro reparo na sua obra na véspera do seu último suspiro. Quando retiraram o seu cadáver da cela, encontraram um rolo composto por várias folhas, laçado por fio de sisal. Entregaram-no à viúva que, por sua vez, o entregou ao filho que, mais tarde, o legou ao seu único herdeiro. O título da peça, Lux in tenebris, estava riscado. Mas o neto, arrebatado pela peça escrita pelo seu avô e conhecedor do motivo por que havia ele padecido, passou a pauta a limpo e intitulou-a Ars moriendi.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-04-01

FOTOLEGENDA - 16

"... e que deus me perdõe..."
"Eu?,
mas que pecado é que (me) cometi?!"

(foto de Pedro Gonçalves,

legenda de Sérgio Ribeiro)


FOTOLEGENDA - 15


"Ahn? O quê?
Não me digam…"
Cenário 1 – ... não me digam que não foi penalti!
Cenário 2 – ... não me digam que pode entrar mosca… antes isso que sair asneira!
Cenário 3 - ... não me digam que ele é isso…
Cenário 4... não me digam que ela é isso…
(...)




(foto de Pedro Gonçalves,
legenda de Sérgio Ribeiro)
Isto dos blogues é o que é. Não é todos os dias, mas há dias em que é. Escrito isto, o que acrescento é para não me enganar.
As imagens têm um poder de suspensão extraordinário. Porque são menos dúcteis do que as palavras, as imagens tendem a ser mais leais em relação ao que capturam. As palavras são sobretudo ruído, estendem-se e conduzem pelo remisso, como um fio. As imagens são plataformas mais resistentes e suficientes. Onde o silêncio das imagens é bastante, as palavras têm necessidade de vibrar e conjugar-se. Talvez que não seja bem assim. Ou talvez até seja ao contrário. Mas, agora, isso pouco releva. Vou, portanto, ao caso.
O Nuno dá a volta a isto tudo. Faz batota no mesmo jogo em que eu me esforço para ser batoteiro. Sinto que ando a perder. Às vezes fujo dele. Falho-lhe a justiça que ele e as fotografias dele merecem.
O Pedro é outro. Não repito porque ele é com outro também. Às vezes sinto inveja. Vem-me aquele desejo de querer também as fotografias dele. Finjo que não pode ser. E finjo que esse facto não me incomoda.
E o outro? O outro, com idade para ter juízo, tem tanta paciência quanto o futuro que lhe arrebenta por dentro. Até chateia, nunca quieto, nunca calado. Ele na dele, eu na minha. Ou, mais exactamente, ele nas dele, eu nas minhas, algumas comuns, porque são tantas. Com o Nuno e o Pedro é o mesmo. E tudo isto se atravessa aqui, de modo mais ou menos invisível. Talvez pareça mentira. No entanto, não é.
As fotografias do Pedro incomodam-me. As do Nuno arrepiam-me. As legendas do outro, o velho, mandam-me para o chão e dão-me vontade de gritar. Não é sempre assim, está bem. Mas é assim mais vezes do que aquelas que me atrevo confessar. Nada disto interessa, claro. Isto é apenas um comentário, aqui, meu para mim, porque eles, a esta hora, madrugada quase aurora, estão a dormir e não sabem que há nevoeiro lá fora. Sim, há nevoeiro lá fora. Andei entre ele, a mexer-lhe com passos de noctâmbulo. Mas isto, reitero, não interessa.
Lavro este testemunho e empresto-lhe publicidade, aqui, por vários motivos. Á, porque estou bem disposto. Não há motivo para isso. Assim como também não há motivo para estado diferente. Mas a vida é o que é e já me habituei as estas oscilações. Bê, porque a simpatia me traiu e saiu. Não costuma ser assim, mas aconteceu que, desta vez, foi assim. Não quero saber porquê. Cê, porque sobre estes três gajos só consigo dizer mais isto, não há legenda para eles. Isto não importa, mas é justamente por tal que é importante e é importante escrevê-lo. Já quase por duas mil vezes almas várias passaram aqui os olhos à procura deles e do rasto deles.
Por isso, para quando acordarem e para que se saiba, ficam aqui, reservados, três abraços à urso para estes três companheiros, um para cada um. Fica um outro abraço da mesma raça para o Paulo, ali do lado daqui, companheiro com quem já fui às ventoinhas e a quem tomei, tanto impulsiva quanto consentidamente, duas fotografias, estampadas aí para baixo.
Sinto o diabo no corpo. É mentira. Mas é verdade. Nem sempre é assim.

foto&legenda # 25


Este é o meu dia. Por isso vou dizer-te a verdade. Sou a filha de Ícaro. E no meu corpo, vês?, hoje acontece-me o outono. Caem-me os braços. Caio com eles.
fotografia © Alain Marc
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 24


Não me percebes, este véu translúcido esconde-me. É mentira que sejas capaz de me ver. Talvez tentes adivinhar quem eu sou, mas não sou evidente para ti. É um mistério recíproco. Também não sei quem tu és, tu que me olhas, tu que me tentas descobrir. Seja como for, repito, é mentira que sejas capaz de me ver.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 23


Olhava, olhava, olhava como olhava, e não a via como uma árvore. Mas ela era uma árvore. A árvore dançava, livrando os seus braços, mais do que os de Vishnu, no embalo do vento. Esses braços, compridos, cresciam para o céu e o seu movimento desenhava uma luminosidade que não é comum nos corpos que não são estrela. Ainda assim, ele não a conseguia ver. Por isso insistia no seu olhar, procurando a árvore e os seus gestos embaraçados. Por alguns instantes chegou a admitir que tal árvore fosse mentira, que não estivesse ali, diante de si. Porém, depois, voltou-lhe a inquietude. Talvez, em outra posição, de outro modo, a conseguisse ver, pensou. Em consequência, fechou ainda mais os olhos. Mas continuou sem conseguir ver a árvore. Não tornou, no entanto, a admitir que ela fosse mentira. Preferiu imaginá-la e vê-la assim, levantada, a jogar os braços soltos, a tentar agarrar o ar, como se dançasse sem mexer os pés. Porque, se ela fosse mentira, outros olhos seriam capazes de a ver. E, de facto, viam.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

legenda&foto # 10

Sobre a mesa, um mapa. Uma mão decifra a sua superfície, tacteando aí, com o indicador, alguns lugares. Esses lugares, porém, não têm o detalhe suficiente para a sensibilidade dos dedos. Sobre o mapa, um calendário. A mão parece vaga, perdida entre latitudes e longitudes. Suspeita-se que procura um destino que ela mesma não consegue reconhecer. Mas ainda não se confirmou esta suspeita. O que é um lugar? Sobre o calendário, um relógio. Um lugar é mais do que o encontro entre as grandezas cardeais do plano geográfico. Um lugar é também o ritmo que aí flui. A mão, pelo que aparenta, insiste em sondar o destino naquele mapa. As coordenadas ordenam-lhe a manobra como se fosse um jogo. Sobre o mapa, sobre o calendário sobre o mapa, ao lado do relógio sobre o calendário, uma peça de xadrez. A mão desconhece as fronteiras daquele território, desliza sem estorvo. Também não conhece as regras que disciplinam o trânsito aí. Sobre a peça de xadrez, guardando-a, uma mão fechada. Sabe-se, pela ironia, que o destino é o tempo, o ritmo que flanqueia e fecha as coisas. Mas a distância para que sempre se leva afastou-o, tornando-o intangível. Por isso, enquanto uma mão preserva a sua posição, defendendo, fechada, o apoio da peça de xadrez, a outra mão perde-se sobre o mapa, porque não é aí, mas na terra mesma, o destino que procura.

legenda © Sérgio Faria
fotografia © Nuno Abreu