2006-03-07

legenda&foto # 4

Boulevard nocturna. Sabe-se pouco sobre o caso. Sabe-se que, sem hora, sem sombra, sem exactidão, sem ritmo, saía de casa para caminhar demoradamente ao longo da avenida, sobre o extenso traço branco intermitente. Sabe-se que pisava aquele chão para confirmar-se ali, para fazer sobre ele o seu apoio e o seu movimento. Eram por hábito, quase ritual, os passos. Passos que eram também um exercício de reencontro e de abrigo, prova de vida. Muitas madrugadas, mais de mil, caminhou, indo e devolvendo-se por aquele caminho, carne da sua cidade. Até que uma noite, após tanto caminhar aquele caminho, aconteceu que a avenida tornou-se intensão do seu corpo e o seu corpo tornou-se extensão da avenida. O que era hábito transformou-se em culpa, rota de sangue, ser dali.

legenda © Sérgio Faria
fotografia © Nuno Abreu

3 comentários:

Sérgio Ribeiro disse...

Os passos. Os passos que fazem caminhos sem ser com a intenção de chegar. Só a de serem passos sobre este chão. Nossos os passos, nosso o chão.
Quase sempre de madrugada. Talvez para se ter a certeza que se é de aqui. Quando é connosco que falamos e nos dizemos certezas. Que as dúvidas ficam para as conversas com os outros.
Sobretudo, esta certeza que somos de aqui. E de que aqui estamos. Caminhando sobre o chão que é o nosso chão.
E a foto! Mostrando de nós talvez o mais importante. Os nossos passos, o chão sobre que os damos. Mas que temos nas mãos? Ou à mão?
Como dizia o Ary, isto vai, amigos, isto vai... temos é de dar passos. No nosso chão. De aqui. De onde somos.

Anónimo disse...

Ia dar os parabéns ao Sérgio Faria, pelo belíssimo texto, deparo-me com o teu comentário Sérgio!
Não sei, se é características dos Sérgios!
Mas o teu comentário está tão bonito, tão nostálgico!
A fotografia, a profundidade dos textos, a falta de Sol!
A perfeição tão próxima de mim, comove-me!

Sérgio Ribeiro disse...

Ó GR, são assim as madrugadas...
Com a falta de Sol mas com ele a nascer, já a dar-nos a claridade do dia nascido.
Se não for antes, um dia destes encontrar-nos-emos. Em Espinho. Temos de lá ir sticar...