2008-12-25

foto&legenda # 431 (da maternidade)

E agora que o menino nasceu, não há-de ser mais difícil explicar-lhe que tem duas mães do que explicar-lhe que nasceu de mãe virgem e foi concebido pela intervenção de um espectro que, porque nunca foi visto, ninguém sabe bem o que é, embora seja sabido o seu nome.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-12-19

foto&legenda # 430 (director’s cut)

Antigamente era a produção artesanal, a manufactura. A vida demorava mais. Agora a vida é uma indústria, uma fábrica de teelnovelas. Várias todos os dias, todos os dias santíssimos, de manhã, à tarde e à noite. Muitas não vemos - são tantas, chiça - e outras são repetidas, reposições. O que fazemos? Depende do tempo e da disposição. Mas a maior parte das vezes ficamos a ver o que acontece e a imaginar o que poderia ou pode acontecer. O natal é muito isto também. Um costume com teelcomando. O presépio, as luzinhas, o pai natal pendurado numa parede exterior como um meliante mesmo a jeito para levar uma chumbada de uma espingarda de ar comprimido, o bacalhau com couves sobre a mesa, o bolo rei ou - se o gosto for outro - o bolo rainha, as filhoses, a família reunida, a lareira acesa, a missa do galo e a ânsia das crianças que esperam as doze badaladas. A histeria natalícia dos cachopos é uma constante das últimas gerações, pode dizer-se. Aquilo da peúga para receber os pacotes embrulhados com papel bonito, às cores, e com laçarote ou lacinho é que está meio fora de moda, não está? E os filmes antigos?, alguém se lembra dos filmes antigos? Na noite de natal a teelvisão devia passar mais filmes desses, dos anos quarenta e cinquenta e a preto e branco. Para não estarmos a ver sempre a mesma coisa, o filme habitual, vezes e vezes sem conta. Ou o caraças.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-11-27

foto&legenda # 429 (corpreensão)

O que não compreendo e não consigo compreender é o motivo por que somos expulsos de um corpo equivalente ao qual desejamos pertencer mais tarde, como se o desejo posterior fosse simultaneamente a confirmação e a negação da expulsão que nos aconteceu antes, como se crescer fosse uma espécie de regresso que, de facto, é continuação e eternidade. Engano também.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-11-04

foto&legenda # 428 (stabat puer, stabat frater)


Zero zero. É difícil explicar os prazeres pequenos, como caminhar pelas ruas deste lugar e comer frutos do fim do verão quando os outros estão dormentes. É difícil e desnecessário explicar-te isso. O que significa que forçar a explicação é equivalente à obrigação de preencher o modelo qualquer coisa, impresso da imprensa nacional casa da moeda, para o efeito devido. Devemos evitar a burocracia vital, o gesto engravatado que nos empurra para a conformidade. O padrão é um equívoco. Não é igualdade, não é fraternidade, não é comunhão. É uma simulação formal e, pela imposição da forma, política da comunidade.

Jesus, Jesus help me
I’m alone in this world
And a fucked up world it is too
Tell me, tell me the story
The one about eternity
And the way it’s all gonna be

Um. Interessam as curiosidades. Este universo, o nosso, está organizado assim, sobre pormenores. Por exemplo, é importante saber onde guardaste a tua infância, na cave? ou no sótão? A resposta importa por ela permitir conhecer o regime de acessos e de reservas que tiveste quando infante e porque disso decorrem consequências. Claro que tu podes recordar melhor aquela ocasião em que tentaste a moeda numa slot machine. Puxada a alavanca, ficaste a saber o que era o azar e a sorte. Mas, insisto, relevante é saber onde, em cima? ou em baixo?, está arquivado o teu passado. Anda, aproxima-te. Não é para enganar-te. Não sou quem procuras, não sou mais do que um rapaz. As noites estão cada vez mais frias. Se aqueço, o motivo é a febre. Isto está pior do que antes. Não tenhas ilusões. Ardem-me as mãos, sinto-as a arder, já te disse?

Jesus, I’m waiting here boss
I know you’re looking out for us
But maybe your hands aren’t free
Your father, he made the world in seven
He’s in charge of heaven
Will you put in a word in for me

Dois. Os ácidos, as bases, o catering, a delicadeza, as delícias, os dedos, nada mais para além do dê. A natureza em versão livre. Depois as bibliotecas a arderem, como nos filmes, o apocalipse. A bela e o senão, dispositivos para exercitar a verdade. Quem julgas que vence?, o animal?, a fome?, a barriga cheia?, o mal distribuído pelas aldeias?, o peixe que morre pela boca? Que seja sortilégio o que é sortilégio, que seja inquietação o que é inquietação. Não nascemos para ser cowboys, mas fingimos que somos assim. Esquece. Ontem matei um homem. Soube-me bem. Não deixei vestígios, fui furtivo. Matei o filho dele também. A mãe do rapaz chorou. Matei-a a seguir, porque um, dois, três. Agora nem pai nem filho nem santuário, embora digam que a mãe voa. Durmo tranquilo.

Jesus, were you just around the corner
Did you think to try and warn her
Or are you working on something new
If there’s an order in all of this disorder
Is it like a tape recorder
Can we rewind it just once more

Zero. As noites estão a começar a ficar frias. Sabes?, as noites guardam-nos como as mães nos guardam, para o fim. Talvez o nosso dever seja sobreviver, sobreviver-lhes. Não nos pariram para a vida normalmente, para sermos casta minipreço ou preçocerto, para o encantamento vídeo a cores. Do amor estranho, o doutor, já ouvimos falar. Até amamos a mesma bomba. Sinceramente, quero que se foda. Não tenho força para mais. Superfícies, arestas, ângulos, prazeres pequenos, sombras maiores. Sinceramente, que se foda. Já sabes como acabam as noites, não é? Uns despertam, outros adormecem. Ó comunidade filha da puta, tão filha da puta, que fazemos, a que pertencemos, que merecemos. Merecemos tanto quanto a morte. Cuspo no chão. Cuspo no meu corpo também. Não será diferente quando e se voltares. Já não sei quem és. Não estou a tentar ser perfeito. Ardem-me as mãos.

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

a legenda é interceptada por versos da canção “Wake up dead man” (in Pop, Island Records, 1997), dos U2.

2008-10-09

foto&legenda # 427 (lugar e voltas)

Foste um lugar, um lugar apenas. O tempo correu sempre sobre ti, como ainda corre, às voltas, dos crepúsculos às auroras e destas a aqueles. Foste um lugar, um lugar apenas, no carrossel das horas. Nada mais poderei dizer sobre ti, excepto que estou a tentar esquecer-te. A minha diária é diferente da tua, incompleta. À minha diária faltam as horas que não consigo, as horas permanentes e rolantes que sempre deixaste correr sobre ti. Foste um lugar, um lugar apenas. Não levo saudades de ti, não quero levar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-09-29

foto&legenda # 426 (godroom)

Que, nesta habitação, da certeza da luz levas também a sombra, para saberes que há coisas que se desvelam e outras que se velam. Que, se fores capaz de olhar como eu, hás-de ver que, carregados por ti, os cestos da vindima levam o que será o meu sangue. Sangue por sangue, é o que é. Que é o que é quase tudo.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-09-05

foto&legenda # 425 (warum der liebe gott will, daß es arme leute gibt)

and born in the mirror where lifes just begun
and i’ve roamed from the reasons and roamed to the gun
*

Perante os pés descalços, é necessário o exercício da epiqueia para explicar o motivo por que deus não nos livra do mal da pobreza e tanto nos entrega a si, sem nos permitir emburguesar, conforme a vontade que é nossa.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

* versos da canção “Devil’s waitin’” (in Howl, RAC Records, 2005), da banda Black Rebel Motorcycle Club.

2008-09-01

foto&legenda # 423/424 (mímica, uma arte de)

O gesto de representação da coisa é mais uma questão de competência estética do que de educação. Ela sabe e faz bem, eles não. Não espanta. A aproximação à perfeição exige jeito que, como o mister Jesualdo Ferreira - uma espécie de Deolinda -, os de baixo não têm. E o seu erro não decorre apenas do modo como recolhem o anelar e o indicador. Como desdita antecipada, decorre também e sobretudo do grémio pelo qual torcem, o da galinha.
fotografias © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-08-23

foto&legenda # hors-série (das continuações, ix)

Confidência. Estou a pensar. Talvez mais do que isso, estou a imaginar. O corpo não é península, é continente. E as feridas são satélites alojados aí. Íntimas, muito íntimas, doem e continuam a doer, mesmo depois de cicatrizarem. Não é segredo, as mágoas não têm fim, não são algo que possa acabar. Creio que são assim, antes de as imaginar. __________ Aprendi a beber café sem açúcar com o meu irmão. Mas isto não é importante. Estou a imaginar a canção em que Nick Cave canta you are not a home for the hearts of your brothers.* E a imaginar o que pode entrar pela janela da cozinha, se aberta. Não sei. A janela não é muito alta, é acessível facilmente. Talvez devesse preocupar-me com o facto. Porém não consigo imaginar que perigo possa passar por aí. Deus?, o bom. Deus não é o melhor dos amantes, é apenas uma personagem que imagino em technicolor. Sim, continuo a imaginar. É tudo quanto depois exige. Depois, exactamente. Agora não é tempo de admitir regressos. Já foram passos demasiados para diante.
fotografia © Aino Kannisto
legenda © Eliz B.
__________
* verso da canção “As I sat sadly by her side” (in No More Shall We Part, Mute Records, 2001), de Nick Cave & The Bad Seeds.

2008-08-16

foto&legenda # hors-série (das continuações, x)

O que mais vejo são as tuas ausências somadas às minhas e o meu corpo preenchido com isso. Desespero?, não consinto que seja. Adianto-me às suas consequências. O que permito sobre o meu corpo é a injunção da loucura, para que pareça certo e consonante, sem desvio à esperança. E depois? - muitas vezes perguntas tu e depois? -, depois é depois, um lugar como outro qualquer. Uma sina, dizes. Mas não a nossa sina, não uma sina comum. _____ Como a ciência velha, tu acreditas em leis. Poderia dizer ainda, tu ainda acreditas em leis, mas não compreenderias o sentido do advérbio. As certezas são-te mais do que tu és. É isso o que mais nos afasta, porque eu tendo a afastar-me dos imperativos saturninos a que obedeces.
fotografia © Traci Matlock e Ashley MacLean
legenda © Eliz B.

2008-08-13

Foto & Legenda - 15 de Agosto

Pode haver festa na aldeia sem filarmónica, da terra ou de perto?
Sem a música pela estrada, pelos caminhos da procissão a acompanhar a padroeira em desequilíbrio porque o alcatrão não chega a todo o lado, mas a fé sim e de lá não quer sair?
Sem o sol a fazer da tuba um espelho, sem a jovem de óculos escuros do saxofone, sem o veterano do trombone de varas, sem aqueles ali de passo trocado (quantos?) e, ao fundo, o bombo que esconde o tocador?
Sem a nuvem que parece que sai do sopro do jovem que anda na universidade, lá longe, e vem ao fim de semana juntar-se aos que por cá labutam?
Sem a marcha Almadanim, mesmo que a Tuna já não seja a do José Jacinto, e na “banda” há muito não toquem o Tó Á, e o Abílio, e o J’aquim Tuba, e tantos outros?
Digam-me se pode?
Dizem os festeiros – e o senhor prior, claro, que ele é que tudo diz, ou, pelo menos, a última palavra diz – que sim.
Mas eu (a)teimo a dizer que não. Que assim ou não é festa, ou não é aldeia, ou tudo isto já é sei-lá-o-quê… e siga a dança a toque de um conjunto de barulho à toa e fumos de cores, tudo comandado de… uma “mesa de mistura”. Até porque o que é preciso é facturar que estão cá os “ça va”.
Ora bolas p’rá “festa na aldeia”, que não é da aldeia, que nem festa é!
foto & legenda de s.r.

foto&legenda # 421 (construção)

A mesma dúvida, se é amarelo e serve para fazer coisas grandes, labirintos, habitações, mundos, é um lápis.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-08-09

foto&legenda # hors-série (das continuações, xii)

Sou do equinócio outonal, da falência de setembro e depois, quando o tempo torna áspero. O verão é uma demora que sofro, não sou seu resort. Imagino o centeio quebrado, as sombras a nascerem nas searas e nas casas caiadas de branco. Sinto o calor a apertar-me a respiração, a quietar-me. Talvez seja sob a luz do estio que mais revelo a fuga em que me consumo. No verão recuo até recolher-me dentro de mim, onde descubro começarem as vertigens. À noite é diferente, mas as noites de verão não são autênticas. Durante o verão não se diz acentuado arrefecimento nocturno, o regime é distinto. Os cheiros são mais soltos, vagam devagar, como se perpetuassem o tempo, produzindo um efeito semelhante ao cigarro com que me acompanho. Não sei, é estranho. O verão faz-me andar lentamente e voltar para trás, para o abrigo telúrico das tardes. O que faço?, espero o outono, o meu ofício. Espero-o sozinha, para a insídia ser perfeita, a continuação.

fotografia © Анастасия Ти́хонова
legenda © Eliz B.

2008-08-07

foto&legenda # 420 (o jogo da cadeira)

Os espaços vazios devem ser preenchidos de acordo com o manual de instruções, cinco números, duas estrelas, uma cadeira.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-08-05

foto&legenda # 419 (eternidade em que os deuses morrem)

O que falta fazer?, a parte de baixo, onde os segredos são guardados entre capas, numa eternidade em que os deuses morrem e os homens combinam encontrar-se com as mulheres. Vem.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-08-02

foto&legenda # 418 (a condição que nos é calada)

Aproximamo-nos vindo do silêncio. Somos a condição que nos é calada.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-07-18

foto&legenda # 417 (<- ->)

Se procuras Shakespeare, podes ir tanto para a direita quanto para a esquerda. É assim, com a escolha, que se abre o sentido de cada tragédia.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-07-16

foto&legenda # 416 (concórdia)

Separadas, a direita e a esquerda, concordam as mãos no trabalho a que são levadas, mexendo nas coisas e pondo obra sobre elas. E pelas mãos passa a invisibilidade de sempre, a demora longa. Até determinado limiar chama-se-lhes vida. Porém o que mostram sempre é a concórdia, inclusivamente no ritmo com que enrugam e redobram a própria hipótese. Daí que, quando se pergunta onde começa a humanidade, não haja resposta mais certa do que nas mãos, porque já duas são dadas em uma pessoa só. De si nascem a multiplicação e a unidade.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-07-12

foto&legenda # hors-série (das continuações, viii)

Como é que compreendo os dias?, perseverando as esperas. Ao demorar consigo decifrar o seu enredo. Torna-se evidente que, nos dias, o amor não é um valido e que amar é um verbo intransitivo. Por isso, do apocalipse, das cicatrizes, dos gemidos estrangulados, das vasas onde deito o corpo, não sei para onde vou. Também não me parece que seja importante saber o destino. Não estou a pensar arrancar-me à sua força. Confesso, imagino o destino como um ovo. É estranho, reconheço, porque ovo significa princípio e destino significa fim, mas talvez seja assim porque é imaginação, por nada mais. Às vezes os sentidos misturam-se. __________________________ Esquece os meus pés, esquece o pó. Uma máquina conduz-me para a distância, os dias levam-me. Eu não volto.
fotografia © Man Ray
legenda © Eliz B.

2008-07-10

foto&legenda # 415 (casa dos comuns)

Esta é a nossa casa, dizem a quem sem abrigo distinto da solidão, como se fosse uma frase de um romance, para amparo. Dizer a frase não é problema maior do que acreditar nela. Em si há um mote de verosimilhança, a que o papel, primeiro, e a ecúmena de Gutenberg, depois, emprestaram foro civilizacional. Não são poucos os que acreditam que, de facto, esta é a nossa casa. Mas, porque falhamos a habitação, na sua proporção maior a frase dita não tem verdade.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-07-08

foto&legenda # 414 (lacrimæ rerum)

A ti, só a ti, poderia dizer certezas, daquelas que os olhos vêem. Poderia insistir até que a evidência se revelasse diante de ti. Poderia lavar os teus olhos com as minhas lágrimas, antecipando-te o inverno. Sei que, não obstante todos os meus esforços, continuarias a não ver o que eu vejo, porque esse é o valor que guardas. Estás quieta para que, cumprindo o sentido das coisas, os outros possam ver por ti e dizerem-te certezas que talvez não haja.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-07-04

Workshop de fotografia da natureza


Workshop no estúdio A IMAGEM por Eduardo Barrento, vencedor na categoria "natureza" do prémio fotojornalismo VISÃO/BES, Lisboa, 2008.


Local: estúdio A IMAGEM Ourém e saída para o campo
Data: Domingo, 20 de Julho de 2008
Horário: 10 horas
Destinatários: Iniciados, ou amadores com alguma experiência
N.º máximo de participantes: 15
Preço: 50 euros
Contacto/Inscrições: estúdio A IMAGEM Ourém
geral@aimagem.com
tel. 249 542 004

PROGRAMA DO WORKSHOP

Manhã

1. Introdução à Fotografia da Natureza e da Vida Selvagem
1.1 Paisagem
1.2 Animais
1.3 Macro

2. A Exposição
2.1 Sensibilidade
2.2 Abertura e profundidade de campo
2.3 Velocidade de obturação e o “tremido”
2.4 Expondo correctamente

3. O Material Fotográfico
3.1 Câmaras
3.2 Objectivas
3.3 Tripé
3.4 Flash
3.5 Extras para a fotografia da natureza

4. A Composição

5. Considerações Finais e Dúvidas

Pausa para almoço


Tarde

6. Saída para o campo

2008-07-01

foto&legenda # hors-série (mehr licht!)

Caio de cima, de onde cai tudo, e entro demasiado nos olhos. Chamam-me luz, ortónimo que nunca vi.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-06-28

foto&legenda hors-série (das continuações, vii)

Sinto o tempo desprendido de mim, o atraso intacto. Espero o adeus. O meu organismo espera-o também, comigo. Se a paixão deixou de ser turbinada?, deixou, sabes bem que deixou. O amor é um séquito de demónios, a beber no sangue, a banquetear-se nas dúvidas, que não pode deixar a carne sem atenção. Não basta que combine com a tensão arterial. Sei que o coração não tem permanências. É um dispositivo irregular, afectado pelas caves e fissuras que o constituem. Mas não é aí, nesse facto, que reside o problema. Agora tenho a tesão partida, é-me em agonia. Se a culpa é tua?, é irrelevante. O nosso amor bandido não pode continuar sem exigir demais à bricolage dos nossos corpos. Tens coração de pistoleiro, olhos de menino, enganas-me. Eu engano-te também, enganamo-nos. Somos demasiado previsíveis e sem depois. Por isso, caso perguntes o que é que aconteceu?, responder-te-ei aconteceram as nossas vidas. Aconteceram até bifurcarem-se em desejos distintos. Para recuperar o nosso amor é tarde, demasiado tarde. É como quereres recuperar um cigarro da cinza. O meu coração dilata, porém não tanto que possa alcançar outra vez o que passou. Menos ainda quando a tua preocupação maior é o pó sobre as coisas e quando eu consigo enganar-me sem ti. Tenho braços, tenho mãos, tenho dedos. Não necessito do teu consolo. Sou dentro de uma mulher, sem dissidência. Ainda sinto os amores como se fossem o primeiro e não houvesse mais, futuro, continuação. Mas sei que há.
polaróide © Fenton Bailey
legenda © Eliz B.

2008-06-23

foto&legenda # hors-série, bis (contra mão)

a single high pitched scream
followed by breaking glass
but could your anger be mapped
into an interpretive dance
to a trip hop track
could it be bowed out on strings
or strung into a pattern
for a god’s eye to bring to
your alma mater’s holiday fundraiser boutique thing
*

Julgo que já tive mais tempo. Antes era definido, funâmbulo, porém definido. Menos vida é isso mesmo, definição e prolongamento. Numa palavra, urgência. Foi sob o motivo da urgência que me surgiu a necessidade de fintar a segurança, a segurança social incluída. Por isso no mesmo gesto concordei promessa e risco. Se estou arrependido? Ainda tenho as mãos, estás a ver?, pelo que não sei se faz sentido o arrependimento. Esta é esquerda, estoutra é esquerda também. Tenho duas mãos sem simetria. Portanto, arrepender-me de quê?, da minha natureza? Estás a perceber? Se eu esconder as mãos, muda alguma coisa? Muda o que vês, apenas isso. Mas a minha condenação por ti permanecerá. Não tens epifania para as minhas mãos. Não é pelo que vês que me condenas, é pelo que não queres ver. Compreendo a tua cegueira para as evidências raras. Também deus é como nós, um desvio a Merleau-Ponty.
fotografias © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

* versos da canção “The fall of mr. Fifths” (in Alopecia, Anticon., 2008), dos Why?.

2008-06-21

foto&legenda hors-série (das continuações, vi)

Se disser que doem-me as costas, acreditas? Doíam-me já ontem e hoje continuam a doer-me. É verdade. __________________________ Os corpos não apelam todos de modo igual. Por exemplo, eu julguei-te mais vivido, com mais estradas. Pedi-te traz-me pecados, mas por algum motivo não correspondeste ao meu pedido. Posso teorizar sobre o assunto, pois posso, porém basta-me a angústia do que posso. Enganei-me, para mim esta admissão é suficiente. Acresce que a ideia de tornar a sacrificar-me por ti não me parece boa. Já me sacrifiquei antes, não estou disposta a repetir sem vantagem. __________________________ O bem não faz parte da minha natureza. Aliás, o bem não faz parte da natureza. Para além disto, ou somos comunidade, juntos, ou não somos e não seremos. E não fiques a pensar que arrumar o cancioneiro da solidão é missão com que me comova ou com a qual seja capaz de entreter-me. Não te iludas. Sei que no fim, diante do fim, tudo o que terei comigo é o meu passado. Daí que prefira que ele constitua culpa, não remorso. Porque da culpa, a minha, aproveito.
polaróide © Fenton Bailey
legenda © Eliz B.

2008-06-20

foto&legenda # 413 (aqui, purgatório)

Mesmo à distância é possível observar o território assinalado, o alcance que podemos, como corpo que é aqui, tão perto e tão longe, onde é algo mais do que nós e nós com ele, porque prisão nossa, da qual somos o continente e o erro.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-06-15

foto&legenda # hors-série (der tod ist ein dandy)

Pátria, não sei o teu nome, mas, a entardecer na penumbra, vejo-te meia carne meia passagem, uma parte corpo, outra parte expresso. Compreendo o teu sentido. Também eu desejo morrer a cavalo ou em nome que me leve a longe.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-06-14

é pá, é só para declarar que a descoberta pela Eliz B. das duas últimas polaróides e de duas outras que hão-de ser aqui expostas foi consequência de uma sugestão prestimosa do Tiago.

foto&legenda hors-série (das continuações, iv)

Os rapazes tornam-se homens e os homens tornam-se problemas, às vezes rapazes com problemas, porque retrocedem, esperançados em reencontrar o amparo do peito maternal que o crescimento afastou. Isto parece ser um artifício narrativo, mas é uma proposição correspondente aos factos, adæquatio rei et intellectus, demasiado verdadeira para ser boa. Verum e factum. Talvez por isto prefiro os homens, eles (a)traem-me, despertam em mim o instinto de mulher, sem plural, com transpiração. Eu sou difícil, não nego, mas os homens são mais. É mais do que uma questão de atracção, é uma questão de diferença, que tem tanto de naturalidade quanto de fatalidade. A condição feminina transporta a condição trágica, a menstruação, as dores disso, nascemos equipadas para sermos mãe, mesmo aquelas que renunciam à vontade de recriar a humanidade dentro de si. Os homens, esses, são frágeis em todos os sentidos, ainda que eventualmente mais resistentes. Degradam-se e suportam a degradação própria com resignação. Olham em volta, deixam-se estar, tornam-se indíces da indigência e do espectáculo da miséria. Como disse, às vezes transformam-se em rapazes com problemas, tornam-se ainda mais insolentes. Conheço-me, não toleraria repetir-me assim e ser consequência de tal repetição, exposta para os outros. Já me basta a evidência de passear no campo e, enquanto, fumar um cigarro. Não sei porquê, não acredito em revoluções, sou contemplativa.
polaróide © Autumn Sonnichsen
legenda © Eliz B.

2008-06-07

foto&legenda hors-série (das continuações, v)

Sabes?, às vezes ouço a mesma canção tantas vezes seguidas que fico sem motivo para dizer o que quer que seja. Não sei se é normal e não sei explicar muito bem. Sento-me no chão do quarto, contra a porta. Esta é a posição em que fico. Ao princípio ouço a canção uma, duas, três vezes, com muita atenção. Após ouço-a mais três, quatro vezes, para descobrir-lhe os pormenores. A partir de determinado momento começo a ficar anestesiada e a sentir uma voz a roçar-se dentro de mim, a perguntar-me se eu sou uma deles. Mas a voz é em inglês, are you one of them?, assim. Eu não respondo. Naquele momento já estou sem palavras. Esgoto-me assim. E continuo a ouvir a canção, mais vezes, mais ainda, até ela ser uma parte do meu corpo, mais do que uma parte de mim. Estás a perceber? O mesmo repisado e repisado, instalando-se na minha carne, camada sobre camada, sem dor e sem resistência. Acolho totalmente a canção. E o que é mais estranho é que este processo faz sentir-me simultaneamente rendida, porque fico exausta, e fortalecida, porque sinto-me preenchida com a força da canção. __________________________ Não, não, eu só faço isto quando estou sozinha. Preciso da solidão. Começo em mim e depois prolongo-me, primeiro dentro do que sou, a seguir no quarto. É uma sensação estranha, mas não é uma sensação má. Eu gosto. Tanto que repito com outras canções. Canções tristes.
polaróide © Olive e Rose
legenda © Eliz B.

2008-05-24

foto&legenda # hors-série (das continuações, iii. do not past)

Aquilo que costuma dizer-se é que a arqueologia traz o passado à superfície, entendendo-se a superfície como presente. Mas se, à procura de Maio, levantas e apanhas o chão, reencontras a praia desse mês? Não. Ao abrires passagem até à terra firme, corrida toda a areia, quanto muito encontras o tempo perdido entretanto, um chão pisado muitas vezes, sem que tenha sido evidente como fundamento dos teus passos e dos passos dos outros. É isto o mais exacto que podes servir-te. E não adianta discutir a dimensão das decisões tomadas antes, se pequenas, grandes ou assim assim. O passado, o teu e o dos outros, corre atrás de ti, no teu encalce, adiantando-se ao ritmo do teu avanço e do avanço dos outros, concentrando-se e dissolvendo-se simultaneamente mais do que na tua sombra, na tua carne, sendo-te intimamente estranho. O jogo do tempo é duplo e duplica-te também, em recordações e esperanças, em atraso e envelhecimento, em um só corpo, no qual e pelo qual hás-de viver e continuar a morrer.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Eliz B.

2008-05-17

foto&legenda # hors-série (das continuações, i)

Escrevo vezes demasiadas o medo de não conseguir ser justa. Não é um medo deveras mais do que é um escrúpulo. Perturba-me sobremodo a hipótese de não conseguir ponderar escritos, ditos e factos, de falhar a medida e repetir uma escala inferior, uma posição dobrada, estreita ao chão, ofendendo por defeito o que está documentado ou foi feito. De igual modo perturba-me o excesso, declarar a mais, inflacionar, ultrapassando o arquivo ou o seu motivo. Por desvio menor ou maior, de défice ou acrescentado, falhar é o princípio da oportunidade que permite tentar outra vez, eu sei. Mais do que qualquer outro elemento, a carne não engana ou ilude tal facto. A morte demora, continua, sim. Eu também. Não me recolho, não me esgoto nas costas. Por isso quando desisto é por voto de justiça, por na circunstância sentir errar o calibre, não por cuidado de defesa, instinto de preservação ou temor. Repito, como a morte, eu continuo também.
fotografia © Tracey Emin
legenda © Eliz B.

2008-05-11

foto&legenda # hors-série (das continuações, ii. cinquenta dias depois)

Já não abrimos o frigorífico há muito tempo. Dói-nos o cotovelo de tanto levantarmos o braço direito para assinalarmos perfunctória e solenemente a nossa fome. Até é provável que a validade dos iogurtes já tenha expirado. Estamos cansados de passar o pano sobre os jogos psicológicos, sobre as perdas e os ganhos do corpo a corpo, sobre as esperas. Os brinquedos estão a apanhar pó sobre a cómoda, estás a ver?, o napperon está encardido. O tempo está a passar. Deveria haver uma agência de salmos, para que não fosse necessário procurá-los em páginas de papel de bíblia. O tempo passa. Ainda há quem mantenha o olhar embrulhado. Os pés não têm escrúpulos assim, pisam. Talvez a modernidade esteja a ficar fora de moda. Talvez tenhamos que avançar, subir escadas, assentar melhor os pés sobre as coisas.
fotografia © Ed Fox
legenda © Eliz B.

2008-05-03

foto&legenda # 412 (unitive knowledge of the godhead)

É uma história de rapazes, como nos filmes em que há muita gasolina derramada e os carros explodem. Começou com uma confissão, tinham sonhos, tinham sombras, casacos de ganga para enganar a condição. Não queriam ser mecânicos ou carteiros, por não gostarem de entregar cartas de amor. Por isso ou por qualquer outro motivo, deus atribuiu-lhes uma ordem de restrição. Não poderiam aproximar-se do desvio, sequer pelo lado da dúvida ou da tentativa. Deveriam portar-se bem, com esforço e esmero, e crescerem, até serem homenzinhos. O fado, a fé e o futebol ajuda-los-iam. Mas cresceram fora do trilho, a ouvir música estrangeira e maluca, a jogar à batota e a baixar as cartas sobre mesas com cinzeiros cheios de beatas, sentados com o comando da playstation em cima dos joelhos e os polegares a conduzirem o manípulo, com a garrafa de cerveja mole entornada ao lado, no sofá, no chão. Pensaram em coisas proibidas, aventuras, pornografia, sondagens, excessos e emigração. Agora fazem downloads piratas e fumam em pose de gangster. Durante a semana usam gravata, combinada com as camisas passajadas impecavelmente pela mãe e os fatos. Dominam os logos, as siglas e o teclado do telemóvel. Deus perdeu-lhes o domínio e os onze por cento da taxa social única. Já não mandam o curriculum vitæ à amostra, têm a fotografia no hi5. São o princípio e a continuação reencarnada de Οδυσσέας.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-04-18

foto&legenda # hors-série (o horizonte de Lorenz)

Que esperas?, a confirmação da tua convicção?, que sentes certeza e facto necessário de uma sequência. Para o destino, as tuas esperanças são inúteis. Podes possuir maços de tempo, acumulados pela experiência de virar as folhas de calendário, colecções de observações rigorosas, classificadas criteriosa e detalhadamente, um arquivo imenso de documentos. Tal não encerra o universo das coisas ou termina o futuro. Queiras ou não, uma gota de água é suficiente para, por um efeito de composição das consequências e dos impactos subsequentes, desviar os caminhos anteriores. Na verdade, por assim ser, continua a não saber-se mais sobre o que não se sabe. Ainda assim, rio-me quando chove e tu choras.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-04-11

foto&legenda # 411 (a liturgia das sombras)

A perseguição acumula a memória, adensa o rasto. Não é necessário saber porquê. A vida é também uma tendência a confirmar o que é anterior, repetindo-se numa espécie de cumprimento dinástico, repetindo-nos nos rituais e nos écrans. A história vence-nos assim, pela denúncia, fazendo-nos simultaneamente a alegoria do destino e os legatários das sombras pelas quais nos revelamos. Se fingimos o fingimento é porque, vivendo, não podemos ser diferentes do que somos.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-04-05

Dos ciclopes que são nossos

Com o rabinho a dar a dar de contentinho, replico aqui - e associo-me - a uma nota do Nuno. Parabéns e vénia ao Eduardo Barrento, por ter vencido o prémio fotojornalismo Visão/Bes 2008, na categoria «natureza». Vá, vão lá espreitar os mochinhos, ao fundo, à direita. E aqui há mais fotografias de bichos do Eduardo.

2008-04-04

Early morning, April 4th
shot rings out in the Memphis sky *

James Earl Ray primiu o gatilho já passava das seis horas da tarde. MLK morreu num dia assim, como hoje.

* versos da canção “Pride (in the name of love)” (in The Unforgettable Fire, Island Records, 1984), dos U2.

foto&legenda # 410 (como os dias caem no chão)

As tardes esgotam-se na penumbra que desvanece o incêndio trazido pela luz. Após o efeito de fade out, o negro que a noite deita e estende sobre as coisas desperta-lhes um sentido diferente. Nocturno, nada é como era. Porque nas coisas mesmas está a sua diferença também. É isto o que a cidade mais guarda.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-03-29

foto&legenda # 409 (despiste)

Às vezes fechamo-nos num tempo. Outras vezes fechamo-nos num lugar, onde a manhã começa a acontecer, não obstante a manhã comece a acontecer em muitos lugares, e esse lugar leva-nos até ao seu tempo, que é o nosso tempo também.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-03-23

foto&legenda # hors-série (levitação)

As tecnologias levam-te e levantam-te até onde não estás. Há quem chame a tal processo ascensão após ressurreição. Talvez seja. Mas é suspeito o modo como reapareces. Voltas mas não ficas, tornas mas vais novamente. Tu, sim, regressas ao futuro. Provavelmente nunca deixaste de lá estar. Mas a necessidade de telefonares ao teu pai, para lhe dizeres que está tudo bem, suscita questões às quais não podes responder mostrando as mãos. Para dizer a verdade e não merecer castigo, também não são as tuas mãos o que queremos ver.

fotografia © Helmut Newton
legenda © Sérgio Faria

2008-03-21

foto&legenda # hors-série (suspensão)

Acabaram-se os exercícios livres. Hoje serás a valer, corpo crucifixo. Esta é a tua oportunidade derradeira. Deixa-te de jogos pequenos, cumpre a missão do teu pai, o cálice. Seres mulher não é desculpa para ti ou isenção para nós. Vai, confirma-te.
fotografia © Francesca Woodman
legenda © Sérgio Faria

2008-03-20

foto&legenda # hors-série (lava pés)

Antes de cear, hás-de lavar os pés. E virá a confirmação de tu seres quem és.
fotografia © ?
legenda © Sérgio Faria

2008-03-15

Foto de outros tempos & legenda de hoje

Há meio século (ou mais!). No Zambujal. Outros tempos, outros transportes, outros serviços públicos. Sem A1 e An, IPs, ICs, e menos alcatrão, sem portagens, sem SCUTs. Máquinas "de tirar fotografias" de muito menor qualidade técnica, mas com outra incomparável qualidade, a de serem novidade.

Saudades? Não. Ou talvez... mas, em definitivo!, não. Cá por coisas.

Uma imensa ternura, isso SIM.

foto que amigos fizeram chegar
ao legendador s.r.

2008-03-14

foto&legenda # 408 (Diderot e a verdade sur scène)

Sobre o estrado são o véu e o vau por cada pronúncia que, como imitação da vida, arrasta o corpo e a voz com ele. No conjunto, aos outros, que vêem e ouvem, mostra-se o fingimento em manobra de drama, para fazê-lo melhor acreditado, vida que não parece imitada, porque é já a vida que leva o engano e o aproveita outra vez para autenticar a imitação.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-03-10

foto&legenda # hors-série (a família babélia)

estou cansado e sou livre, o que são motivos suficientes
para começar esta oração.

um avô disse, o outro avô disse, uma das avós disse,
a mãe disse, o pai disse, o irmão disse, a irmã disse,
deus disse e com ele todos os anjos disseram também,
está quieto, mas ele não estava. e assim cresceu,
como uma torção para a qual sempre houve censura
mas nunca houve terapêutica.

ele tornou-se adulto utilizando o método do desejo,
e isto não é metáfora. caminhou por desvios e regressos
vários, porém por não tantos quantos os que encontrou,
porque escrutinou-os com a vontade. demorou jornadas
no lado dos perdidos, assumiu a propriedade vaga dos nómadas
e aprendeu a orientar-se pelos elementos, sem, no entanto,
esquecer-se de onde havia partido e a onde às vezes tornava,
a casa.

um dia, coincidente com um dos seus retornos a casa, sem aviso,
como foram todos os seus retornos, juntou-se à família.
reunidos, todos ficaram calados e ele, porque parte de todos,
entrou na sala, sentou-se entre eles e ficou calado também.
a partir de determinado momento, longo o silêncio e o incómodo,
alguns levantaram-se e, sem dizerem qualquer palavra,
abandonaram a sala e foram passear para o jardim,
seguindo os contornos da topiaria amanhada com cuidado.
havia felicidade naquele caminho entre as cores, dizia-se.
à medida que tais alguns se afastaram, os seus passos ressoaram
sobre o soalho, antes de, por dissipação, apagar-se o respectivo som.
provocadas as folgas da madeira, o sobrado pisado também rangeu.
estes ruídos, nítidos, talvez nítidos em demasia, cortaram o silêncio
que havia na casa. então, dentro da sala, alguém começou a assobiar.

ele levantou-se, segurou o cortinado de uma das janelas, afastando-o,
e, sem pressa, através do vidro, ficou a observar a torre imponente,
que, pelo tempo e pelo coro calado das vozes daquela casa,
a família haveria de falir.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © serôdio d’o.

2008-03-06

Raios e coriscos...

O que o legendador teve de andar para trás (quase um semestre!) para encontrar uma foto cá da terra deste fotógrafo cá da terra... Uff!
Com todo o respeito e admiração por algumas belas fotos de gente, caras e mãos que de cá são, e de belos voos como o deste pássaro-dragão que está mesmo aí abaixo... e que foi em vão.
.
foto de Nuno Abreu
legenda de Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 406 (uma sequência)

São muitas as histórias da história, os episódios e as coisas que não deviam ter acontecido mas aconteceram. Nunca saberemos o que poderia ter sido diferente, às vezes por pouco, tão pouco, quase nada. As tragédias consumam-se assim, com nome.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

A partir de um auto-retrato

O quê? Deixar este blogo fechar?
Nem por castigo de ser ter deixado aquele "urso" tanto tempo sozinho a alimentá-lo! Vejam só como ficou um dos fotógrafos que, aliás, seria também um ótimo legendador.
Vamos lá a animar isto seus (ir)responsáveis.
foto de Pedro Gonçalves
legenda de anónimo (encontrado na rua)

2008-02-27

Sol(o) e sombra

O clarinetista procurou uma sombra onde pudesse soltar os sons. Encontrou. Pobre, raquítica, saudosa de ante(s)passadas sombras que por ali havia. E outras coisas também. Os sons eram pungentes. Ou eu assim os ouvi ao ver a fotografia.
Foto de Pedro Gonçalves
Legenda de Sérgio Ribeiro
Pós-legenda: Meio-tresmalhado tenho andado, sim senhor homónimo mais novo. Mas sem nunca perder o trilho ou o malho. E vocência, que raio de ameaças são essas? Ora tenha juizo e façófavor de continuar a trazer p'ráqui as imagens que encontre e descubra mail'a sua prosa.