2008-02-27

Sol(o) e sombra

O clarinetista procurou uma sombra onde pudesse soltar os sons. Encontrou. Pobre, raquítica, saudosa de ante(s)passadas sombras que por ali havia. E outras coisas também. Os sons eram pungentes. Ou eu assim os ouvi ao ver a fotografia.
Foto de Pedro Gonçalves
Legenda de Sérgio Ribeiro
Pós-legenda: Meio-tresmalhado tenho andado, sim senhor homónimo mais novo. Mas sem nunca perder o trilho ou o malho. E vocência, que raio de ameaças são essas? Ora tenha juizo e façófavor de continuar a trazer p'ráqui as imagens que encontre e descubra mail'a sua prosa.
Em eras de blogs, dois anos é muito tempo. Mais tempo é quando o tempo flui mais rápido do que os gestos. Adiante. Porque se impunha, na coluna das ligações passam a constar os links para os lugares de onde têm sido pilhadas consentidamente as fotografias que são exibidas aqui também, nomeadamente as do João, que foi o nosso correspondente em Praha, as do Nuno, de quem fui e sou o primeiro devedor, as do Paulo, que vai ter um livro brevemente, as do Pedro, que originalmente estava entregue a legendador mais velho, as do outro Pedro, que é o nosso correspondente em London e que para mim é muito mais do que isso, e as do Tiago, a última revelação ou a revelação mais nova, todos gajos com sangue oureense, o que nem é bom nem é mau, é o que é. Um acrescento a propósito. Neste exercício inútil de arranjar rodapé para fotografias, foi com gozo muito particular, de arrombo, mesmo, que descobri o trabalho de José Boldt. Mas adiante novamente. É provável que as vinhetas que, tipo parasita, vêm sendo apostas às fotografias dos rapazes referidos atrás comecem a demorar. O homónimo do princípio e titular maior da culpa disto anda meio tresmalhado - meio, porque já não tem idade para tresmalho inteiro. Mas os moços das fotografias, não obstante a roda das estações, continuam a clicar. Por isso, conselho a vós, vão directamente à origem. As imagens estão lá e dispensam palavras. De quando em quando, se vos aprouver, apareçam aqui. A porta e as janelas ficam abertas. Escancaradas. O costume. Mas, doravante, sem promessa de haver novidades. Regulares ou outras. Que é mais ou menos o mesmo que anunciar o começo da morte disto.

2008-02-26

foto&legenda # 403 (das irdisch-absolute)

Quase como Broch propôs, o absoluto que habita a terra, onde a carne é simultaneamente a incógnita e a coordenada.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-02-25

o ciclope solitário

Solo © Ricardo Moyano, Maria Calatayud e Ysabel Castro

2008-02-22

foto&legenda # 402 (chamapocalíptica)

Uma espécie de fogo, the hellhound’s here, que arde sem se ver e que se repete mesmo quando não gritas if you kiss that girl you won’t be caught dead. Sim, eu sei que não é verdade, mas fico a ouvir-te à mesma. Gosto do ruído da artilharia. Gosto também da tua distorção e não sou capaz de chamar-lhe feedback. Será amor?
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

na legenda consta, primeiro, um verso da canção «Hallucinations» (in Lust, Lust, Lust, Fierce Panda Records, 2007) e, depois, um verso da canção «Love in a trashcan» (in Pretty in Black, Columbia, 2005), ambas do duo dinamarquês The Raveonettes.

2008-02-20

foto&legenda # hors-série (casos florais, ii)

Ao passar por certos nadas, para atravessar no sentido de algo que prefiguro incerto ou diferente, como os lugares estrangeiros, as minhas mãos ainda transpiram. Nesses momentos de passagem tento as âncoras possíveis, para evitar afastar-me demasiado daquilo que o trânsito arrasta para trás. Tento recordar o perfume do café moído na loja do fundo da rua, o ruído dos biscoitos embrulhados em pacotes de papel pardo, algumas vozes, algumas faces. Tento o contacto derradeiro com os confortos pequenos que ficaram dentro de casa, para, no movimento que me leva, adiantar-me a sensação de regresso. Vou para poder voltar, com o nome da terra inscrito no corpo e na esperança, dobrado em avesso e em escala que não confesso. Sei que deixei flores frescas na jarra, uma fímbria de mim. E que, do lado de lá, adormecerei entardecida, sem uma página de amor para voltar.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Eliz B.

2008-02-18

foto&legenda # hors-série (casos florais, i)

Ela, depois de tantos dias a esperar por ti, trazes-me uma promessa? Ele, não, trago-te mais do que uma promessa. Ela, estou cansada do jogo em que me jogas, estou cansada em particular dos teus sinais. Ele, uma flor não é um sinal, é o sinal. Ela, as flores murcham. Ele, o que é que isso quer dizer? Ela, o consome as flores, o tempo consome-nos. Ele, sabes?, não foi me possível regressar antes. Ela, mas, antes, foi possível não teres partido; partiste, a decisão foi tua. Ele, pois foi, foi tipo uma aposta, uma aposta de vida. Ela, algo perdeste. Um fio de sangue perseguia-o.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Eliz B.

2008-02-15

foto&legenda # 400 (exercício de correspondência)

No modo como correspondem às coisas, as mãos são o condutor das cores e das formas e o que as confirma.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-02-13

sermão de louvor à penitência persistência

Agora, o templo de que o Miguel é o leal zelador tem à porta uma cancela, guardada por um polícia sinaleiro que exige senha. Basta clicar «compreendo e pretendo continuar» para ultrapassar a estupidez do polícia sinaleiro e entrar. A rendição é uma manobra marcial. E, como clamava o uncle Winston, we shall never surrender.

2008-02-11

foto&legenda # 399 (telhado com três gatos)


És ainda muito pequeno para perceber certas coisas, dizias. Tinhas razão. Eu não sabia o que queria dizer flambé. Também não sabia o que queria dizer Brigitte Bardot ou Jane Birkin ou respiração ofegante mois non plus. Sequer tinha dúvidas em francês. Não obstante, levavas-me pela mão, para abrir o mundo pelo lado do avesso. Era um amor sem remuneração, eu apenas tinha que, de mão dada a ti, caminhar mais depressa, para acompanhar os teus passos. Quando íamos à retrosaria perguntavas sempre se havia daquelas caixas mais pequenas, que tinham formas estranhas e delicadas e eram coloridas, diferentes das outras que eu já conhecia, de papelão grosso, que, por embalarem electrodomésticos ou outras máquinas, abundavam lá em casa. Eram para mim, as caixas. Deixavam-nos ir lá atrás, passar as cortinas pesadas, subir a escada, escolher. Por tudo isto, do cenário ao cheiro do lugar, havia o meu deslumbramento. Depois, diante do universo das caixas, sorrias e ensinavas-me economia. Só podemos levar uma, de qual gostas mais? E quando dizias isto continuavas a sorrir. Era o mesmo sorriso que fazias quando me levavas ao mercado para testemunhar os cachos de bananas, pendurados no tecto. Nessa altura, sem necessitar de grande concentração, o bulício em torno desaparecia e eu conseguia ouvir os mesmos ruídos que o Tarzan ouvia. Só quando passavas a mão pela minha cabeça, desfazendo a minha auréola, é que voltava o barulho do mercado e abandonávamos aquele lugar fantástico, na senda de outra bancada. Eu só não ia à do peixe. Se durante a volta me furtava à tua guarda, já sabias onde encontrar-me. Lá estava eu, a contemplar os cachos de bananas, a desviar-me dos outros sempre que necessário, para não perder o contacto com aquele elemento exótico por um instante que fosse. Levaria uma semana a poder tornar a olhar fascinado para os cachos de bananas. Isto aconteceu muito antes de eu ter aprendido o que queria dizer depressão e embriaguês e intoxicação. Foi por essa altura que, sem ter visto algum a partir de um plano superior, aprendi que existiam telhados. Lá em cima, no topo das casas, havia telhados. Como serão os telhados?, perguntava-me em pensamentos. Tanto que, para deslindar o mistério, um dia, sem aviso, atrevi-me a subir ao sótão para espreitar os telhados das casas circundantes, mais baixas do que a nossa. Porque os degraus que conduziam ao sótão rangiam, surpreendeste-me, disseste-me para parar e descer. Que não havia nada para ver lá em cima, que os telhados não eram um lugar assim tão mágico. Mas, ao mesmo tempo, o que intensificava a minha curiosidade, dizias que os telhados eram o lugar dos pássaros. E zombies?, há lá zombies? Assim formulada, a pergunta era estranha. Mais ainda porque colocada por alguém cuja maior ousadia era folhear livros de aventuras do intrépito major Alvega. Ouviste mal a história, os zombies não voam. Nunca voaram. De facto, eu era ainda muito pequeno para perceber certas coisas. Mas tu não desistias. E, para me recuperares para a realidade, quando me levavas à rua, apontavas para o manequim quase despido exposto no interior da loja e dizias, olha, conheces?, é a Deolinda. Como sabias, não sei. Às vezes havia reflexos no vidro da montra e eu não conseguia espreitar. Ainda não tinha sido feito o diagnóstico dos meus males de vista, miopia e astigmatismo. Que eram mais coisas que, sendo-me íntimas, eu não sabia o que eram. O tempo passou. Agora, que tenho um olho à cyborg, sei que estão três gatos no telhado a apanhar sol. O nome de um é Ludovico. Todo preto, tem apelido literário, Settembrini.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-02-08

foto&legenda hors-série (cotação actual, seteuros)

Perguntas se, depois, o lugar do rasgo ainda é lugar. Não sei. Há tantos avessos quantas voltas. Talvez seja nisto o seu sentido. Não sei. É tudo cada vez mais parecido com uma viagem. E nós vamos. E voltamos. Mas não pelo mesmo preço. Apenas na ilusão do dinheiro é o mesmo preço. O regresso, sabes?, é sempre diferente. Incide sobre ele uma taxa de remorso que pagamos com tempo que já não temos. É mais caro justamente por isso. Os reflexos, incluídos os reflexos nos espelhos, porque apontam para trás, não contam para a cotação.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-02-06

foto&legenda # 398 (and miles to go before i sleep)


Entre tantas pressas, não o sentido único, não o sentido proibido, mas o desejo de ser gangster, prometer e acelerar durante as fugas. Se não durante mais, durante a noite, a casa das interdições.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-02-04

foto&legenda # 397 (eternal sunshine of the spotless mind)


Todo o jogo das sombras começa nos pontos que amparam a luz.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-02-01

foto&legenda # 396 (com passos)

No ofício das nossas horas, as maiores e as menores, que são o nosso caminho, quem perseguimos? Perseguimo-nos a nós, enquanto alcance que se promete e afasta, para onde precipitamos os nossos passos. Porquê? Porque somos o lugar de que fugimos para ser corpo e o seu encalço.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria