2012-04-06

foto&legenda # 487 (a quaresma acaba sempre um dia)

Começaram a falar sobre pesca, tópico evangélico, o anzol, a qualidade do isco, com derivação para as sextas-feiras e a dieta. Mastiguei devagar, as palavras e a carne, para esconder o tédio, talvez mais do que isso, o desprezo pela conversa. Às vezes sem falarmos temos mais força, sinto isso. Acabei de beber o vinho. Imaginei a hipótese de três leopardos brancos sentados sob um cedro, como no poema de Eliot. Depois levantei-me e afastei-me dali, como se me despisse da canção que fazia o fundo. Subitamente um uivo. Onde? Quando? Porquê? Julgo que não podemos continuar a amar-nos assim, com tanta paixão, com tanto governo. Apetece-me fumar enquanto espero. Os dias continuam a ser de caça. Este é o território onde podemos crescer e conhecer a fome. Aponto. Um estrondo seco, outro, tantos quantos os necessários, não mais do que dois, um par. Ninguém nos separa. A arma tem alma lisa, confesso-me a ela, ela prolonga-me. Alguém há-de acreditar em nós. Mostro tudo, mas vê-se apenas parte. A diferença que faz ou pode fazer o que se vê não me perturba. Estou do outro lado, é daí que proponho o destino. Não acredito em ressurreições, creio apenas em tiros falhados.

fotografia © Cynthia MacAdams
legenda © Sérgio Faria