2009-03-29

foto&legenda # hors-série (das continuações, xvi)

Apesar de toda a sinceridade que tento, agora tenho medo de dizer que ouço vozes. Se o dissesse, pensariam que sou ou estou doida, olhariam para mim como alguém que precisa de arranjo. Não preciso. A loucura é outra coisa. Sofro apenas uma espécie de iluminação nocturna a que já me habituei e à qual chamo inquietude. __________ Ouvir vozes pode ser entendido como efeito de uma perturbação, sei. Mas ouvir vozes não é pior do que escutar o eco da solidão. Para além disto, gosto de sentir a minha solidão povoada, agrada-me sentir o corpo a estremecer devido às vozes que ouço. Creio que, mais do que uma agitação, algo estranho, tal é um modo de me despertar, é uma prova de que estou viva. É verdade que, às vezes, ao mesmo tempo que ouço as vozes, sinto que está a chover dentro de casa. No entanto não saio de casa. Sair, mormente sair por estar a chover dentro de casa, seria tentar fugir de mim, desencarcerar-me da identidade em que estou conjugada, afastar-me do espaço a que, pela habitação, pertenço. Não renuncio ao que sou, não tenho necessidade de procurar-me em objectos diferentes, em reflexos ou nas sombras da rua. Não estou perdida ou dissoluta, ouço vozes, apenas isso. Pelo que, caso sinta precisão de procurar-me, sei que, na hipótese mais tardia, haverei de encontrar-me através do choque com as paredes da minha casa. É aí, dentro, que procurarei um modo de evitar a chuva que cai sobre mim. Porque não admito e não quero admitir que a chuva lave as vozes que ouço. A loucura é outra coisa, não ter nexo.
fotografia © Alice Lemarin
legenda © Eliz B.

2009-03-10

foto&legenda # 438 (mundos)

Tens duas hipóteses, que são parecidas com as definidas na espécie de dilema enunciado por Heisenberg. Ou encaras o mundo em directo (e ficas cingido ao espaço e ao tempo que são teus) ou lês as notícias no jornal (e ficas a saber das coisas de longe e com atraso).
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2009-03-08

foto&legenda # hors-série (das continuações, xiv)

Estou na demora dos dias, a demora eterna que podemos observar desde uma janela. Os sinais, mesmo os sinais pequenos, não chegam. Há algo no universo, uma força, uma função, uma vontade, não sei o quê, que me adia para tarde, que me pede mais horas, que me obriga a esperar, como se eu pudesse continuar à espera dos sinais que não chegam. Não, não posso. Sinto a pressa dos lavores, não a posso trair. Nunca quis ser como tu, nunca. Faço as coisas mais devagar. Às vezes demoro à janela, a espreitar a luz a desfiar-se em tempo, só isso. Porque é assim, pelos farrapos de tempo que espreito, quieta, que consigo afastar-me de ti, da tua circumpresença, e continuar mais certa, sozinha.
fotografia © Maarit Hohteri
legenda © Eliz B.