2007-03-30

foto&legenda # 286 (homo graffiti)

Tudo muito bem, nada a objectar. Mas os meus olhos já não me permitem ver as moscas ou os graffitis. A miopia que os afecta torna tudo baço, translúcido. Por isso, como o Borges final, não sofro o que vejo. Rememoro ou imagino as coisas. Homens a voar em paredes, por exemplo. A evidência é a mesma.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-03-28

foto&legenda # 285 (vê de vé(n)us)

O corpo não se quer quieto. Não lhe falta gramática para a promessa. Também não lhe falta mapa para o caminho. Por ele somos levantados. Por ele corremos alados. Nele assentamo-nos e sofremos o seu estro, o horizonte, os passos, a coreografia. Por ele é o norte e o sul, o levante e o ocidente, o cimo e o baixo, toda a geografia e os seus lugares. No corpo é ainda a residência, embora, depois de haver mundo, no princípio o tenham fechado em véus para lhe enganarem a forma. Foi assim que lhe prenderam a carne. Mas ele soltou-se pela culpa e pela vontade, ditando-se movimento, não peregrinação. É por isso que, quando em desenho animado, a essa liberdade chama-se dança.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-03-26

foto&legenda # 284 (jogo na cumplicidade)

Quando nas mãos domesticamos bolas de fogo, o que é que se concretiza?, um segredo?, o prestígio mágico? Nada disso. O fogo embrulhado é algo que aprendemos a jogar para iludir a culpa. Depois, mesmo sem imaginação, pelo magistério de Prometeu, conseguimos descobrir dragões, subjugar génios e deuses, voar até onde os olhos não vêem.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-03-23

foto&legenda # 280 (sombreado)

Todos os jogos obedecem a um regime cinético. Aí a vantagem disputa-se nas sequências possíveis. Quem avança?, quem recua?, quem sai?, por que ordem? Lance após lance, as posições e os movimentos alternam-se. A dinâmica do jogo resulta da distância entre umas e outros e da perseguição que daí resulta. Apenas quando as posições e os movimentos se encontram definitivamente, do mesmo modo que a sombra se justapõe ao corpo quieto - como que fundindo-se -, é que o jogo termina.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-03-22

foto&legenda # 281 (lado bê, não satélite)

A vida é uma hipótese que se consuma nos dois planos da luz, o solar e o lunar. É este o seu máximo zodiacal possível. O resto, os passos, as sombras, a noite, o seu jogo, é sob o domínio de Houdini.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-03-21

foto&legenda # 282 (continental)

O deslize de um lugar dentro de um lugar, de uma plataforma dentro de uma plataforma, sob o mesmo limite, a mesma fronteira. Chama-se transporte a esta operação. Vêem-se as luzes que bordam os espectros urbanos, a deslocação das suas presenças definidas ou vagas, ouvem-se os ruídos amortecidos pelo efeito cavado contra o exterior. Mas é uma passagem apenas, um movimento de translação no interior da comunidade mesma que se pronuncia e reserva através do vidro do autocarro. A cidade acontece assim, cena e trânsito. Também é assim que se expressam as distâncias e o continente, porém em reverso, não em reflexo.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-03-20

foto&legenda # 283 (alvener de céu)

Quando alguém morre, esperam-se lágrimas de quem sobrevive, as chamadas lágrimas de perda. Mas ninguém chora por alguém que morreu. Enquanto expressão de vida, o choro é um modo de egoísmo. Esta é a certeza. A dúvida é sobre os anjos, inclusive os anjos de parede. Eles choram? como nós, eles voam? como nós, tambem morrem? como nós.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-03-19

FOTO&LEGENDA - 64

Sigo a minha sombra. Ela atravessou a "zebra" antes de mim. Guiando-me.
A minha sombra! Por vezes, é ela que me segue. Mas só acontece quando a luz do sol, à minha frente, mais me cega. Então, sinto-me perdido no meio das sombras. Incapaz de servir de guia. A mim e à minha sombra.
Sigo a minha sombra. Ela, sim, é o meu guia. E vou-a estimulando com a minha bengala de cego. Ouço-a. Antecipando os meus passos. Dizendo-me: vá!, anda, faz o nosso caminho. Caminhando no meu encalce.

foto de Nuno Abreu
legenda de Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 278 (crescença)

Na oficina, o menino não podia brincar com a rebarbadora, uma das ferramentas mágicas, que fazia e soltava partículas de fogo. Também não podia brincar com o martelo, por não ter no braço a volta e o vigor necessário para dobrar o ferro sobre a bigorna. Isso eram missões e glória dos que bebiam cerveja e dos que tinham um calendário cuja estampa era uma mulher nua. O que, muito, o fazia querer ser maior. Nunca conseguiu. Pois, passado algum tempo, com as mãos encardidas, deixou de sonhar com os engenhos de serralharia e com a emancipação provida pela intimidade com a ferrugem.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-03-17

foto&legenda # 277 (esperança)

Alto!, quem vem de lá? Eu. Eu quem? Eu mesmo. Mesmo como? Como próprio. Então faça o favor de esperar. De esperar? Sim, de esperar. Mas de esperar como? Como quiser. Como quiser? Sim, ou sentado, se preferir.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-03-16

foto&legenda # 276 (satan said dance)

Pode substituir-se a luz por uma cicratiz. É isso que desejas?, sombra? ou carne?
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-03-15

foto&legenda # 275 (s’il-vous-plaît)

Quando a luz se torna baça, outonal, as esplanadas perdem o esplendor que tiveram durante o estio. Algumas sobrevivem, resistem sob arcadas ou mais expostas. São um plateau raro. Enquanto cenário de vida, valem muito pela coreografia de serviço em que se pode participar. Um uniforme, uma bandeja, uma missão, estes elementos encontram-se com um desejo, dispondo-se a satisfazê-lo. A improbabilidade da comunidade é ultrapassada pelo efeito das palavras, dos passos e dos gestos. E o mundo acontece aí, numa circunscrição tão apertada, sem nos apercebermos do quase milagre que é esse acontecimento.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-03-14

foto&legenda # 274 (café sumajestade)

Sou capaz de enunciar o mundo de muitos modos, redondo, quadrado, triangular, sem geometria, onde as ruas têm nome, horizonte apenas, cidade fantasma, onde tu não existes, contigo, sem reis ou rainhas, com génios, com deus, dia ou noite, outono, inverno, primavera ou verão, com demónios, sem demónios, novo, antigo, aberto, fechado, com porto, sem porto, próximo ou longínquo. Sou capaz de pronunciar o mundo de modos mais, tantos quanto a cidadania da imaginação consentir. Porém, para acrescentar diversos ao universo, necessito de uma pausa. É um cimbalino, se faz favor.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-03-13

foto&legenda # 273 (comunidade de chaises longues)

Pode falar-se sobre a ausência do mesmo modo que pode falar-se sobre a companhia. Mas uma cadeira vaga não é autenticamente uma cadeira. É um programa de utilidade suspensa, é um vazio funcional, é um dispositivo de lugar. No intante em que alguém se sentar, então, a cadeira tornará a ser uma cadeira e não apenas o seu espectro em regime de espera.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-03-12

foto&legenda # 272 (tempos de princesa antigos)

Uma linha de amor, um passo de dança, um concerto com a mão só, duas ou três linhas de veneno. E, durante o exercício, o cheiro do linho rendado e cingido ao corpo, como se fosse a memória dos tempos da avó, a memória da arca maior, de onde saíam composições textêis improváveis, peças grandes, perfumadas de eucalipto e de naftalina.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-03-09

foto&legenda # 271 (xis the one, ii)

Não há preceito, you look like an angel, as coisas são como são, walk like an angel, nem mais nem menos, talk like an angel, conforme a vontade dos nossos senhorios, but I got wise, a nossa senhora e o nosso senhor, you’re the devil in disguise, e tu és quem és, oh yes you are, sem tirar e sem pôr, the devil in disguise, sem disfarce.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria *

* a legenda intercepta o refrão da canção “(You’re the) devil in disguise”, de Elvis Presley.

2007-03-08

foto&legenda # 270 (xis the one, i)

Um ponto de apoio, simplesmente um ponto de apoio. E, sobre esse ponto, ela ergue e sustém o mundo, autenticamente o mundo, e tudo o que aí dança.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-03-05

foto&legenda # 269 (versículo da queda)

Quando, em seis, uma janela é diferente das outras, um corpo cadente, a perseguir a respectiva sombra, é uma distracção apenas. Porque, sabe-se, em queda, qualquer sombra pesa mais do que o motivo sombreado.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-03-02

FOTO&LEGENDA - 63 -

Nós.
O nó que amarra diferentes.
E que se desamarra quando diferentes se reconhecem e incompatibilizam tão diferentes são, e só(s) diferentes têm de continuar a ser para continuarem a ser. Diferentes. Um de corda, outro de aço.
Por vezes, tão apertado é o nó que tem de ser cortado. E dói. Dói muito. De forma diferente porque diferentes são.

foto de Nuno Abreu
legenda de Sérgio Ribeiro