2007-08-31

foto&legenda # 344 (estilo de vida)

Talvez um demónio doméstico, talvez um fantasma só seu. Não se sabe. O que é sabido é que, de um momento para outro, deixou de falar sobre a doença que o afligia. Suportou a dor, como um estóico, dor de corpo inteiro. Não se sabe porquê. Foi levantado padecente. Foi baixado e carregado padecido. Agora, que há memória e indústria disso, é tudo diferente. Erguem réplicas de aço com têmpera para resistir aos elementos, utilizam gruas na manobra, e deixam o seu sofrimento exposto para sempre. Não há redenção, nunca houve. Continuamos com os erros, os mesmos, os de cada dia, os nossos, à vista. É mais fácil assim. Já não há tempo para carregar sobras, assim como não há oportunidade para devoluções. O que fica é para ficar. Olha-se a montra, ajuda a luz que incide. Joga-se com os reflexos. Depois segue-se.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-24

Cresci com rapazes como o Eduardo Barrento. Joguei à bola com ele. Ouvi música maluca com ele. Deleitei-me com os desenhos e as caricaturas que ele fazia e mostrava (vide, para inveja, amostra ao lado). Por contas e torsos da vida, perdi-lhe o rasto. Os rapazes quando crescem são assim, vão, afastam-se. Fomos. Mas não nos esquecemos.
Há aproximadamente um ano, casualmente tornei a encontrá-lo. Descobri que ele também faz parte da pandilha dos ciclopes com sangue oureense, que nem é bom nem é mau, é o que é. Parte do seu trabalho pode ser apreciado aqui. Agora ele é coordenador e monitor de um projecto de educação ambiental e patrimonial da ADEPA, associação de Alcobaça. Gosta de bichos e, embora sem intenção, já pisou uma cobra-de-água-viperina (Natrix maura), a que tirou retrato. Por fim, se não se curou - suspeito que não, porque o mal tende a ser tipo doença vitalícia -, ele é sportinguista, o que não é, nunca foi, bom abono de quem quer que seja. Sorte, nossa, é que o trabalho dele é bom.

desenho © Eduardo Barrento

2007-08-23

FOTO&LEGENDA s/nº

Que luta-filha-da-puta.
O que dói mesmo, o que dói muito cá dentro, o que dói bem no fundo, e custa tanto a cicatrizar, é quando algum de nós - e parece que são escolhidos os melhores de nós... ou então passaram a sê-lo! - se fica para sempre no rescaldo desta luta-filha-da-puta.
foto de Pedro Gonçalves
legenda de Sérgio Ribeiro

2007-08-22

foto&legenda # 342 (ardente)

Talvez o solstício conte mais do que julgamos. Ouvi dizer que os trópicos jogam com ele o que nos aquece. Às vezes o resultado desse jogo chega demasiado perto de nós e dos nossos. Dizem que é o inferno. Sabes?, julgo que não é. Ouvi dizer que o inferno não é uma estação, é o destino. E que o destino somos nós que o fazemos. Mas não tenho certeza sobre o assunto. Umas vezes julgo que sim, outras vezes julgo que não. Sei lá. O que sei é que, além de na forja, no fogão e na candeia, é no inverno, quando me toca o frio, que domino o fogo. Á, é verdade, esqueci-me disto. Tenho um pavio aos santos que arde todo o dia todos os dias no azeite da minha labuta. O meu pão sai do trigo que lanço ao chão. E, agora, desde que o António da Hortense ficou mal das mãos - maleita de um raio que lhe deu, já foi não sei quantas vezes ao hospital, andou para lá a caminhar tempos sem conta e nada, coitado -, sou eu que lanço o fogo aquando a romaria e as procissões. É isto o que havemos de levar deste mundo. Ou deixar cá. Sei lá.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-20

foto&legenda # 341 (homo net)


Every letter a needle, as in Kafka. *


Às vezes temo, temo-te, por não poder acompanhar-te, por não poder ir para onde e para o que vais, fechar-te nesse átrio de solidão onde dividimos e partilhamos o corpo e o alcance.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

* verso do poema "9 Willow street", de Ted Hughes, incluído no volume Birthday Letters (London, Faber & Faber, 1999).

2007-08-19

foto&legenda # 340 (coração que fenece)

Ter do lugar o lugar mesmo e apenas e sobre si acrescentar chão para respirar de outro modo, para bater à mesma, para continuar.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-17

foto&legenda # 339 (rio grande)

A mesma fé que levanta e leva derruba, prosta. Por tantos temores, não é fácil navegar no seu rio.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-15

foto&legenda # 338 (escola de avisos)

Esta história é antiga. Em pleno dia, sol lustroso, andava com uma candeia acesa e perscrutava aqueles com quem se cruzava. Julgaram-no louco, mas ele continuou a sua senda. Διογένης procurava o homem. A caravana passava.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-13

foto&legenda # 337 (face a face)

Por canal apertado e sombras, contestado contra condestável, duelo ao sol. Morte também
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-10

foto&legenda # 336 (a (de)cadência)


Não há memória das coisas antigas; e também não haverá memória das coisas que hão-de suceder depois de nós, entre aqueles que viverão mais tarde. *


São muitos anos a dizer não. A dizer sim também. Neste trabalho de ditos são tantos os totens levantados quantos os altares abandonados. Sei porque tudo isto foi obra pela palavra. Ela por ela, ele por ele. Mas depois houve mais caminho. Não conheço esse caminho, sei que houve apenas. Memória talvez tenha havido também, mas quanto a isso, por prudência, digo nada. Que glória ampara os desfalecidos? Sim, qual glória é a glória dos aflitos?, dos que caem?, aberto o campo de batalha. Somos caídos à vigília das carnes para quê? De que nação vêm os inimigos? No momento em que inclino a cabeça, no momento em que sei a sentença, expio a temperança. Não derramo lamento, conformo-me com a culpa. Guardo-me a ela, sem cuidado, sem fadiga. Aprendi a distinguir adornos e necessidades. Decidi e estabeleci aí a minha morada. A dúvida era o meu salário, já não é. Cumpro-me com a confiança. Persevero no meu ofício e nas minhas horas, tentando, tentando, tentando. Adio assim o fim. Adio-o eternamente, como o tento, sem recompensa ou reparação. Avanço mais alguns passos, sete. A infâmia toca-me não porque eu a tenha convocado. Sou assim. Não regresso. Nada tenho a confessar. Sou assim. Os leopardos são assim também, demorados a imaginar o outono a que se prometem, como numa canção triste. Como eles, sou assim por lei e metrónomo, ritmo lento, quase preguiça, resistência. Sou assim. Mas preferia ser capaz de fingir o tempo. Nunca é sempre. E isso esgota-nos, esgotar-nos-á.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

* versículo onze do capítulo primeiro do Livro do Eclesiastes.

2007-08-08

foto&legenda # 335 (ió)

Quem é este gajo sem orelhas à minha esquerda?
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-08-06

foto&legenda # 334 (caçador d’almas)

O jogo é simples. Agora, que não te vejo, tu escondes-te e, depois, eu procuro-te, regougou ele, consertando-se sob a sombra, a sua zona de vantagem. Há muito que ele joga este jogo. Primeiro descontrai as vítimas para, num lance, num gesto quase imperceptível, através de um olho só, as transformar em estátua de sal, como deus fez à esposa de Lot.

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-08-03

foto&legenda # 333 (sinais de fogo)

São os pós modernos. Agora também sob a forma de mensagem o fogo arde sem se ver.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-08-01

foto&legenda # 332 (for whom the bell tolls)

Dobram as horas inteiras, as meias e os quartos. Dobram as festas e o luto, no seu momento. Dobram a certos e a incertos, a exactos e a vagos, como apenas as máquinas dobram, com precisão. Dobram, fundindo a frio o ritmo do tempo, como forja que não antecipa ou demora os seus recados. E, por si, à soberania que repercutem para o que é próximo ou distante, os dobrados somos nós, obrigando-nos à rendição. O que significa que o teu tempo e o meu tempo não existem. Também já não podemos regressar.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria