E pensar. Pensar na vida. Ou não pensar. Não pensar na vida.
Apenas olhar! Para lado nenhum. Deixar-se ficar. Assim.
Até que o morrão do cigarro queime os dedos. Ou nem sentir o calor – ou o frio.
Até tudo ser só cinza, pó. Nada.
Ao longo dos anos muitas foram as vezes em que o Américo lhe rogou um cigarrito. Apesar da insistência, nunca teve sorte o Américo. Até que um dia alterou a moda, deixando de pedir um cigarrito para passar a pedir uma moedita. A sorte do Américo mudou. Agora, com frequência, o Américo acerca-se dele e sabe certo que, embora ele não fume, habitualmente transporta moedas no bolso. A última vez que o Américo lhe perguntou tens aí uma moedita?, hoje, ele deu-lhe duas moedas, uma de dois euros, outra de dez cêntimos. Com a moeda de dois euros o Américo comprou um bilhete de lotaria instantânea. Com a moeda de dez cêntimos raspou onde era para raspar. Percebendo que ganhara cinquenta euros, o Américo inverteu o ritual. Dispensou o sussurro de rogo, a proximidade também, e, em alta voz, à distância, perguntou, queres tomar alguma coisita?, hoje pago eu.
foto de Pedro Gonçalves
Logo o outro disse "'tá bem, sim senhor!" e acrescentou, como gosta de acrescentar, "é p'ra já!"
E aí está a legenda:
Enquanto
a mulher
Os olhos fechados deixam adivinhar ternura.
Os lábios desenhados, linhas suaves, sombra e luz.
Os braços cruzados sobre o corpo como carícia leve.
A mulher.
Só mulher.
Enquanto.
Esperando.
Vivendo ser mulher.
O fotógrafo foi, apenas, o que agarrou o momento,
o que conseguiu fixar o enquanto.
A ternura adivinhada,
as linhas suaves,
a sombra e a luz,
a carícia suave.
Tudo o que a máquina foi guardando.
O encanto.
Aquela mulher:
a mulher!
(foto de Pedro Gonçalves, depois de ter lida a "legenda" sugerida)