2008-06-28

foto&legenda hors-série (das continuações, vii)

Sinto o tempo desprendido de mim, o atraso intacto. Espero o adeus. O meu organismo espera-o também, comigo. Se a paixão deixou de ser turbinada?, deixou, sabes bem que deixou. O amor é um séquito de demónios, a beber no sangue, a banquetear-se nas dúvidas, que não pode deixar a carne sem atenção. Não basta que combine com a tensão arterial. Sei que o coração não tem permanências. É um dispositivo irregular, afectado pelas caves e fissuras que o constituem. Mas não é aí, nesse facto, que reside o problema. Agora tenho a tesão partida, é-me em agonia. Se a culpa é tua?, é irrelevante. O nosso amor bandido não pode continuar sem exigir demais à bricolage dos nossos corpos. Tens coração de pistoleiro, olhos de menino, enganas-me. Eu engano-te também, enganamo-nos. Somos demasiado previsíveis e sem depois. Por isso, caso perguntes o que é que aconteceu?, responder-te-ei aconteceram as nossas vidas. Aconteceram até bifurcarem-se em desejos distintos. Para recuperar o nosso amor é tarde, demasiado tarde. É como quereres recuperar um cigarro da cinza. O meu coração dilata, porém não tanto que possa alcançar outra vez o que passou. Menos ainda quando a tua preocupação maior é o pó sobre as coisas e quando eu consigo enganar-me sem ti. Tenho braços, tenho mãos, tenho dedos. Não necessito do teu consolo. Sou dentro de uma mulher, sem dissidência. Ainda sinto os amores como se fossem o primeiro e não houvesse mais, futuro, continuação. Mas sei que há.
polaróide © Fenton Bailey
legenda © Eliz B.

2008-06-23

foto&legenda # hors-série, bis (contra mão)

a single high pitched scream
followed by breaking glass
but could your anger be mapped
into an interpretive dance
to a trip hop track
could it be bowed out on strings
or strung into a pattern
for a god’s eye to bring to
your alma mater’s holiday fundraiser boutique thing
*

Julgo que já tive mais tempo. Antes era definido, funâmbulo, porém definido. Menos vida é isso mesmo, definição e prolongamento. Numa palavra, urgência. Foi sob o motivo da urgência que me surgiu a necessidade de fintar a segurança, a segurança social incluída. Por isso no mesmo gesto concordei promessa e risco. Se estou arrependido? Ainda tenho as mãos, estás a ver?, pelo que não sei se faz sentido o arrependimento. Esta é esquerda, estoutra é esquerda também. Tenho duas mãos sem simetria. Portanto, arrepender-me de quê?, da minha natureza? Estás a perceber? Se eu esconder as mãos, muda alguma coisa? Muda o que vês, apenas isso. Mas a minha condenação por ti permanecerá. Não tens epifania para as minhas mãos. Não é pelo que vês que me condenas, é pelo que não queres ver. Compreendo a tua cegueira para as evidências raras. Também deus é como nós, um desvio a Merleau-Ponty.
fotografias © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

* versos da canção “The fall of mr. Fifths” (in Alopecia, Anticon., 2008), dos Why?.

2008-06-21

foto&legenda hors-série (das continuações, vi)

Se disser que doem-me as costas, acreditas? Doíam-me já ontem e hoje continuam a doer-me. É verdade. __________________________ Os corpos não apelam todos de modo igual. Por exemplo, eu julguei-te mais vivido, com mais estradas. Pedi-te traz-me pecados, mas por algum motivo não correspondeste ao meu pedido. Posso teorizar sobre o assunto, pois posso, porém basta-me a angústia do que posso. Enganei-me, para mim esta admissão é suficiente. Acresce que a ideia de tornar a sacrificar-me por ti não me parece boa. Já me sacrifiquei antes, não estou disposta a repetir sem vantagem. __________________________ O bem não faz parte da minha natureza. Aliás, o bem não faz parte da natureza. Para além disto, ou somos comunidade, juntos, ou não somos e não seremos. E não fiques a pensar que arrumar o cancioneiro da solidão é missão com que me comova ou com a qual seja capaz de entreter-me. Não te iludas. Sei que no fim, diante do fim, tudo o que terei comigo é o meu passado. Daí que prefira que ele constitua culpa, não remorso. Porque da culpa, a minha, aproveito.
polaróide © Fenton Bailey
legenda © Eliz B.

2008-06-20

foto&legenda # 413 (aqui, purgatório)

Mesmo à distância é possível observar o território assinalado, o alcance que podemos, como corpo que é aqui, tão perto e tão longe, onde é algo mais do que nós e nós com ele, porque prisão nossa, da qual somos o continente e o erro.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-06-15

foto&legenda # hors-série (der tod ist ein dandy)

Pátria, não sei o teu nome, mas, a entardecer na penumbra, vejo-te meia carne meia passagem, uma parte corpo, outra parte expresso. Compreendo o teu sentido. Também eu desejo morrer a cavalo ou em nome que me leve a longe.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-06-14

é pá, é só para declarar que a descoberta pela Eliz B. das duas últimas polaróides e de duas outras que hão-de ser aqui expostas foi consequência de uma sugestão prestimosa do Tiago.

foto&legenda hors-série (das continuações, iv)

Os rapazes tornam-se homens e os homens tornam-se problemas, às vezes rapazes com problemas, porque retrocedem, esperançados em reencontrar o amparo do peito maternal que o crescimento afastou. Isto parece ser um artifício narrativo, mas é uma proposição correspondente aos factos, adæquatio rei et intellectus, demasiado verdadeira para ser boa. Verum e factum. Talvez por isto prefiro os homens, eles (a)traem-me, despertam em mim o instinto de mulher, sem plural, com transpiração. Eu sou difícil, não nego, mas os homens são mais. É mais do que uma questão de atracção, é uma questão de diferença, que tem tanto de naturalidade quanto de fatalidade. A condição feminina transporta a condição trágica, a menstruação, as dores disso, nascemos equipadas para sermos mãe, mesmo aquelas que renunciam à vontade de recriar a humanidade dentro de si. Os homens, esses, são frágeis em todos os sentidos, ainda que eventualmente mais resistentes. Degradam-se e suportam a degradação própria com resignação. Olham em volta, deixam-se estar, tornam-se indíces da indigência e do espectáculo da miséria. Como disse, às vezes transformam-se em rapazes com problemas, tornam-se ainda mais insolentes. Conheço-me, não toleraria repetir-me assim e ser consequência de tal repetição, exposta para os outros. Já me basta a evidência de passear no campo e, enquanto, fumar um cigarro. Não sei porquê, não acredito em revoluções, sou contemplativa.
polaróide © Autumn Sonnichsen
legenda © Eliz B.

2008-06-07

foto&legenda hors-série (das continuações, v)

Sabes?, às vezes ouço a mesma canção tantas vezes seguidas que fico sem motivo para dizer o que quer que seja. Não sei se é normal e não sei explicar muito bem. Sento-me no chão do quarto, contra a porta. Esta é a posição em que fico. Ao princípio ouço a canção uma, duas, três vezes, com muita atenção. Após ouço-a mais três, quatro vezes, para descobrir-lhe os pormenores. A partir de determinado momento começo a ficar anestesiada e a sentir uma voz a roçar-se dentro de mim, a perguntar-me se eu sou uma deles. Mas a voz é em inglês, are you one of them?, assim. Eu não respondo. Naquele momento já estou sem palavras. Esgoto-me assim. E continuo a ouvir a canção, mais vezes, mais ainda, até ela ser uma parte do meu corpo, mais do que uma parte de mim. Estás a perceber? O mesmo repisado e repisado, instalando-se na minha carne, camada sobre camada, sem dor e sem resistência. Acolho totalmente a canção. E o que é mais estranho é que este processo faz sentir-me simultaneamente rendida, porque fico exausta, e fortalecida, porque sinto-me preenchida com a força da canção. __________________________ Não, não, eu só faço isto quando estou sozinha. Preciso da solidão. Começo em mim e depois prolongo-me, primeiro dentro do que sou, a seguir no quarto. É uma sensação estranha, mas não é uma sensação má. Eu gosto. Tanto que repito com outras canções. Canções tristes.
polaróide © Olive e Rose
legenda © Eliz B.