2009-06-30

foto&legenda # 440 (círculo de círculos)

São sempre dois mundos, um maior do que o outro, um prévio e o outro posterior, este nascido daquele. Esta ordem repete-se nos mundos novos. Um é mais antigo e o outro é saído daquele. Durante alguma demora estoutro é mais pequeno e cresce. Os paralelos e os meridianos desta equação importam, porém importam pouco. A escala é a mesma, circular, o espaço e o tempo dobrados nas voltas. Sucede que os olhos rodam menos mas vêem mais, fazem o mesmo mundo, o mundo dos mundos, diferente e continuado. Cá é como lá, um mundo inteiro, onde tentamos ver o que acontece longe, para confirmar o que o nosso espelho reflecte. É estranho que seja o mesmo? Talvez. Mas a estranheza é nossa. Porque vezes poucas vamos a lugares distantes ver como somos repetidos. Se fôssemos, perceberíamos que estamos lá também.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2009-06-21

foto&legenda # hors-série (das continuações, xxi)

As vozes endoidecem-me. Tenho consciência de que me repito. Os sonâmbulos têm mãos também. Esta associação, vozes e mãos de sonâmbulos, é livre. Talvez seja uma perseguição. Admito que sim, a conjectura é plausível. _____ As coisas dividem-me. Prendo-me a elas para as disputar e separar-me mais de mim. A inveja é apenas mais um ângulo da minha presença. __________ Continuar é uma maneira de cair. Agora vivo em queda livre e magoada, sem outra vez. Tenho os lábios esquecidos no medo, um beijo pronunciado neles como rumor ou murmúrio. Nenhuma palavra, nenhum gesto. Os amantes amam devagar, com culpa, são assim. _____ Às vezes desejo esconder o corpo - escondê-lo, mais do que recolhê-lo -, fazê-lo passe-partout da ausência que tento. _______________ Deixei de fazer o casting cardíaco do costume. Agora obedeço ao impulso, entrego-me para partir. Do abandono ao resgate, o movimento da identidade pelo qual sou é o afastamento. A ausência faz parte do meu processo de reflexão e inflação. Tenho as mãos moídas de tanto agarrar-me. A tua forma desvaneceu-se delas, encheram-se de liberdade, incêndio e horto também. O modo como as integro no meu corpo, sem o louvor da falta, é a consequência mais evidente disso. Sofro a sensação de pertencer às paredes, como se o que é permanência em mim fosse a minha identidade e não um desvio. É esta intimidade com a matéria que me funde na necessidade. _____ Sigo o perfil irregular dos frutos, acompanho-me. A poesia não é saída ou entrada, é um caminho. Eu prolongo-me por trajectos diferentes, em manobras de perda e distância. Apesar de ser verdade, digo isto como se fosse verdade. Afasto-me, dobro-me no exílio. Puxo o corpo mais para mim, para fechar as vozes. Mas continuo apenas. Sou a morada das vozes. Continuo.
fotografia © Laurence Ellis
legenda © Eliz B.

2009-06-11

foto&legenda # 439 (raça)

O que é que eu posso fazer?, tu és de portugal e tu és do benfica. São clubes grandes, sei, sim, senhora e sim, senhor, mas são poucos os dias da semana para que possamos ser felizes. Estão a perceber? O Jesualdo, por exemplo, não percebe.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2009-06-07

foto&legenda # hors-série (das continuações, xx)

Tenho que concentrar-me, arrumar a cabeça. O vício da morte persegue-me novamente. Estou para a indolência dos gatos, as manhãs e as tardes, capaz de demorar e esperar o corpo agora, de modo a que seja um momento eterno, que há-de acabar, mas que se sente infinito, para além do tempo estrito, as horas, as dobras, a sequência longa pela qual me faço presente e entrego a mim. _______________ Pensava que estava preparada para tudo, não estava. Atrelada a um universo de silêncios que crescia à medida que eu perdia a recuperação e a repetia em vão, tornei-me principiante. I’m an absolute beginner.* O que já não tenho é a inocência do princípio. Afastei-me dos sinais. Deixei de mandar postais. _____ A ressaca é quase perfeita, entranha a tristeza no meu corpo, domina as minhas mãos. Como represália, faz-me cair inteira, embora não necessariamente íntegra. É demasiado vago ou nada o que amortece a minha queda. Comungo o chão. _______________ Tudo está bem quando alguém sente que está com o tempo que lhe pertence. Comigo é diferente. Excedo a oportunidade, a vantagem marginal de quem termina. Tenho o coração calafetado, a sístoles certas e equívocas. Segredo nenhum tenho para revelar. Pretendo apenas continuar. A solidão, talvez o que é mais preciso em mim, convoca-me para a continuação. Não cedo a acasos. É o que quero.
fotografia © Rikki Kasso
legenda © Eliz B.
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* verso da canção “Absolute beginners” (in Absolute Beginners, Virgin Records, 1986), de David Bowie.