2008-11-27

foto&legenda # 429 (corpreensão)

O que não compreendo e não consigo compreender é o motivo por que somos expulsos de um corpo equivalente ao qual desejamos pertencer mais tarde, como se o desejo posterior fosse simultaneamente a confirmação e a negação da expulsão que nos aconteceu antes, como se crescer fosse uma espécie de regresso que, de facto, é continuação e eternidade. Engano também.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-11-04

foto&legenda # 428 (stabat puer, stabat frater)


Zero zero. É difícil explicar os prazeres pequenos, como caminhar pelas ruas deste lugar e comer frutos do fim do verão quando os outros estão dormentes. É difícil e desnecessário explicar-te isso. O que significa que forçar a explicação é equivalente à obrigação de preencher o modelo qualquer coisa, impresso da imprensa nacional casa da moeda, para o efeito devido. Devemos evitar a burocracia vital, o gesto engravatado que nos empurra para a conformidade. O padrão é um equívoco. Não é igualdade, não é fraternidade, não é comunhão. É uma simulação formal e, pela imposição da forma, política da comunidade.

Jesus, Jesus help me
I’m alone in this world
And a fucked up world it is too
Tell me, tell me the story
The one about eternity
And the way it’s all gonna be

Um. Interessam as curiosidades. Este universo, o nosso, está organizado assim, sobre pormenores. Por exemplo, é importante saber onde guardaste a tua infância, na cave? ou no sótão? A resposta importa por ela permitir conhecer o regime de acessos e de reservas que tiveste quando infante e porque disso decorrem consequências. Claro que tu podes recordar melhor aquela ocasião em que tentaste a moeda numa slot machine. Puxada a alavanca, ficaste a saber o que era o azar e a sorte. Mas, insisto, relevante é saber onde, em cima? ou em baixo?, está arquivado o teu passado. Anda, aproxima-te. Não é para enganar-te. Não sou quem procuras, não sou mais do que um rapaz. As noites estão cada vez mais frias. Se aqueço, o motivo é a febre. Isto está pior do que antes. Não tenhas ilusões. Ardem-me as mãos, sinto-as a arder, já te disse?

Jesus, I’m waiting here boss
I know you’re looking out for us
But maybe your hands aren’t free
Your father, he made the world in seven
He’s in charge of heaven
Will you put in a word in for me

Dois. Os ácidos, as bases, o catering, a delicadeza, as delícias, os dedos, nada mais para além do dê. A natureza em versão livre. Depois as bibliotecas a arderem, como nos filmes, o apocalipse. A bela e o senão, dispositivos para exercitar a verdade. Quem julgas que vence?, o animal?, a fome?, a barriga cheia?, o mal distribuído pelas aldeias?, o peixe que morre pela boca? Que seja sortilégio o que é sortilégio, que seja inquietação o que é inquietação. Não nascemos para ser cowboys, mas fingimos que somos assim. Esquece. Ontem matei um homem. Soube-me bem. Não deixei vestígios, fui furtivo. Matei o filho dele também. A mãe do rapaz chorou. Matei-a a seguir, porque um, dois, três. Agora nem pai nem filho nem santuário, embora digam que a mãe voa. Durmo tranquilo.

Jesus, were you just around the corner
Did you think to try and warn her
Or are you working on something new
If there’s an order in all of this disorder
Is it like a tape recorder
Can we rewind it just once more

Zero. As noites estão a começar a ficar frias. Sabes?, as noites guardam-nos como as mães nos guardam, para o fim. Talvez o nosso dever seja sobreviver, sobreviver-lhes. Não nos pariram para a vida normalmente, para sermos casta minipreço ou preçocerto, para o encantamento vídeo a cores. Do amor estranho, o doutor, já ouvimos falar. Até amamos a mesma bomba. Sinceramente, quero que se foda. Não tenho força para mais. Superfícies, arestas, ângulos, prazeres pequenos, sombras maiores. Sinceramente, que se foda. Já sabes como acabam as noites, não é? Uns despertam, outros adormecem. Ó comunidade filha da puta, tão filha da puta, que fazemos, a que pertencemos, que merecemos. Merecemos tanto quanto a morte. Cuspo no chão. Cuspo no meu corpo também. Não será diferente quando e se voltares. Já não sei quem és. Não estou a tentar ser perfeito. Ardem-me as mãos.

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

a legenda é interceptada por versos da canção “Wake up dead man” (in Pop, Island Records, 1997), dos U2.