2007-09-28

foto&legenda # hors-série (na casa da floresta)

Muitos dias depois voltei as costas. O jogo foi interrompido. Os lobos já me conheciam, mas continuavam a tentar enganar-me.
fotografia © Alison Brady
legenda © Sérgio Faria

2007-09-26

foto&legenda # 353 (western babilónia)

Sou tudo o que escondo ser e tudo o que mostro. Já fui cowboy, já fui mais novo, muitas lendas. Já fui e ainda sou plataforma e margem. Não é pelo meu rosto que me conheces ou reconheces, porque, para me conheceres, necessitas de mais justiça do que aquela que atribuis ao meu rosto. Sou mais do que isto, face, e mais do que me retribuis por ela. Pela minha face resumes-me e encontras-me apenas. Até pelo meu nome apanhas-me mais. Sim, sou autêntico, tenho impressão digital, tenho nome. Eu ajudo-te, não me chamo Jesualdo Ferreira. Estou aqui.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-09-25

foto&legenda # 352 (postal a um dono)


ao meu pai adoptivo

Tenho que ir. Não porque queira. Nem precise. Vou porque tenho que ir. São os odores. Chamam-me. Não os que emano. Os que trazem promessas. Hipnotizam-me. Promessas de me perpectuar noutros como eu. Os que me adoptaram sabem o que sou. Mas custa-lhes que parta. Custa-lhes não entender os odores. E quando não entendem, revoltam-se, chateiam-se. Devia ter deixado um aviso no lar adoptivo: cuidado com o dono.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Mário Abreu

2007-09-24

foto&legenda # 351 (sequência nocturna)

A tua mão permanece fechada. É assim que as coisas começam. A cidade é uma máquina de fazer noites.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-09-21

foto&legenda # 350 (quiromancia)

Abre a palma da tua mão, noite, mostra-me as linhas da tua identidade, guia-me aí. Incendeia a solidão comigo, negro conta o teu negro. Somos todos sozinhos, a esta hora e às outras. Não consigo o fogo que trazes, não sei o martelo que te acende. Fúria, talvez. Não sei. O estrondo é primeiro, espécie de aviso. E depois é o lume riscado a raios ac/dc sobre o ébano nocturno, caçador high voltage de trevas. Não sei. A tua mão permanece fechada.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-09-19

foto&legenda # 349 (jogo de diafragma)

A teoria da luz é a teoria de uma velocidade. Tudo o que é visto é visto com atraso, o que significa que o visto chega-nos velho. Por outras palavras, o que vemos é uma iluminação antiga. Neste sentido, somos duplamente demorados, pelo que somos e pelo que vemos. E, necessariamente uma propriedade tardia, a lucidez agora pode já ser uma sombra.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-09-17

foto&legenda # 348 (y)ours

Há muito tempo que a imaginação foi morta. Agora a realidade cinge-nos, conforta-nos com a sua proximidade, substituindo o cadáver de deus, morto como e quando foi morta a imaginação. Agora os nossos braços são o prolongamento dessa realidade. E porque o regime é único, modo de o dizer sobreevidente, já ninguém escreve a verdade. O próprio catecismo tem uma frase apenas, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb, repetida, how I learned to stop worrying and love the bomb. Como ninguém se preocupa com a verdade é necessário repetir muitas vezes a mesma doutrina. A realidade é e (con)vence-nos assim, pela insistência. Mas de pouco adianta. A extinção já está escrita no horizonte que nos espera. Os cyborgs da próxima geração serão de papel.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-09-14

foto&legenda #347 (letras e papel)

Olha como esperam por ti!
Olha como te fitam
como se sempre tivessem sido o teu horizonte!

Vê como te chamam,

como se transformam em fonte,

pequena ribeira, longo rio e parte do teu mar.

Olha como é espantoso o apelo,
como é persuasivo

e como enfrenta a indiferença das tuas mãos!

Olha como és cativo

dos seus domínios pagãos,

da sua força divina e do seu poder de encantar.


Final inevitável: Rendição.
Postura espectável: Desarmar.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Carmen Zita Ferreira

foto&legenda # 346 (o avesso da umbria)

Também os homens têm a sua contraluz. Não se chama sombra, chama-se mulher. No entanto, como von Goethe à hora da morte, a toda a hora os homens clamam mehr Licht!, modo quase literário de chamarem a mulher à sua presença e atenderem mais próximos a sua lucidez. É assim este regime porque, eles sabem, os homens sós morrem mais facilmente do que a própria sombra. Fracos, portanto, os homens necessitam de sombra alheia que os ilumine. E a tal necessidade chamam amor tanto por fraqueza quanto por cegueira de encandeamento e ofuscação.

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-09-12

foto&legenda # 345 (solar dos levados)

Há livro de reclamações neste estabelecimento. Acomode-se e preencha o impresso. Utilize letra de imprensa. Assinale com uma cruz cinco números e duas estrelas. Não há fiado. Faça o obséquio de entrar. É como ir às Berlengas. Compra-se um bilhete de ida e volta. Mas neste caso a volta é primeiro.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-09-10

foto&legenda # hors-série (equinócio sete)

Começo a sentir o cansaço de escrever estes bilhetes postais. Raramente sei se chegam ao destino. Raramente recebo resposta. Agora que está a chegar a estação dos frutos secos comecei a pensar. Talvez a acompanhe e parta. Começo a sentir o cansaço do mesmo, da repetição, todos os dias ou quase todos os dias. Isto não é vida, pelo menos é o que eu sinto, isto não é vida. Não sei, não prometo. Mas talvez não fique mais, sinto que não posso continuar a ficar. Agora as horas demoram. Ficar aqui e esperar o quê?, o fim? É preferível ir encontrá-lo noutro lugar. Porque a rambóia não acaba aqui.
fotografia © Annie Leibovitz
legenda © Sérgio Faria

2007-09-04

foto&legenda # hors-série (além do verão azul)


Querido papá,

gosto muito de ti. Também gosto muito da mamã. Gosto muito, muito, e dos dois por igual, batata a ti, batata à mamã. E também batata à mana, porque tenho um coração grande, maior do que o coração de um leão. Sabes?, papá, entretida nos meus sossegos e nas minhas aflições, estou cá a pensar comigo como será depois. Ainda é cedo para esse tipo de preocupações e será o que será, está bem, mas como será é que eu ainda não sei e isso inquieta-me, que queres que faça? Tu também não sabes. Mas, pelas minhas suspeitas de pequenina, já vou sabendo algumas coisas. Sei que um dia levar-me-ás ao jardim zoológico para ver elefantes e girafas. Irei de mãos dadas, uma a ti, outra à mamã ou à mana. Havemos de ver também os hipopótamos e os ursos de que falas tanto e que não são como os de peluche. E depois passaremos pelas águias, que dirás que são os pássaros do Benfica e que são da família das galinhas, e passaremos pela cidade dos leões, onde dirás que são os bichos do Sporting. Não ficarei surpreendida. Por mais que tentes o contrário, hei-de gostar mais de dragões e não, não, não é por causa do Harry Potter dos livros. Os nossos verões serão azuis, papá. Mas para mim azul será mais do que os verões, os nossos. Será sempre. Mas não fiques triste, não deixarei fazer tatuagens na minha pele. Ou, se deixar, não será uma rosa ou um golfinho. Querido papá, não te rias, porque um dia, quando a minha mão for maior, assinarei este postal com o mesmo orgulho com que sou tua filha. Talvez até o escreva outra vez, em francês ou inglês, para mostrar-te o que aprendi na escola. Agora um beijinho grande para ti, da tua menina, a L.
.

fotografia © Nuno Abreu
postal © L.