2007-01-31

FOTO6legenda - 62 - Os pombos, eu conheci-os!


Guerra Junqueiro conhecia os melros. E, segundo ele, há cada um...

Pois eu julgo conhecer bem os pombos. E eles são cá umas aves...

Num período da minha vida, tinha de queimar horas de vida e ficava tempos esquecidos a observar os pombos nos beirais da Sé de Lisboa.

Ao princípio distraído, depois curioso, por fim furioso. É que aqueles bichos, nas suas relações pessoais (ou pombais) são egoístas, são prepotentes, são violentos.

Fiquei-lhes com uma zanga! Não descobri, num que fosse num momento que fosse, qualquer resquício de fraternidade, de solidariedade, sei lá... de humani(mali)dade que entre outras espécies tanto se vê, mesmo em distraída observação.

Então na relação entre sexos a coisa é mesmo truca-truca e já está, e a fêmea parece possuida como se fosse um objecto que para ali estava e para ali fica.

Eu bem os via aproximarem-se, arrastando a asa, arrulhando com um som que de carinho se interpreta, saltar em cima de uma pomba ali postada... e já está. Cada acto se me assemelhava a uma violação. E a pomba, coitada!, submissa e resignada.

Não gostei, pronto!, do que vi durante horas de queimar tempo. Talvez esteja a ser injusto e fosse o meu estado de espírito de então, ali metido no Aljube, que me fizesse ver assim. Mas o facto é que tenho vindo a confirmar o que então vi, embora noutras situações, embora com outros olhos de dentro.

Aliás, tudo isto nasce, como recordações em conta de rosário, desta bela foto em que estou a ver o macho a preparar-se para cair sobre a fêmea-prêsa, usá-la, e, depois, abalar deixando-a como estava, submissa e resignada. Isto é, as recordações estragaram-me o fruir desta imagem tão bem captada pela máquina (e pela sensibilidade) do Nuno.

Mas adiante... apesar disso, estilizada pelo Picasso ou pelo Alberti (Ah!, a legenda... La paz, que es lucha encendida, vuelo para una paloma, sol y tierra, sin herida), a pomba é um dos meus signos sinais.

E vou tentar esquecer, por agora, o resto. Aljube e essas coisas.
foto de Nuno Abreu
legenda de Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 247 (dentro aberto)

Talvez o interior seja mais do que o avesso do que é fora. Por exemplo, há interiores visíveis, que podem espreitar-se. Às vezes, a olho despido, é possível constatar uma sucessão de mosaicos transparentes, que simultaneamente se abrem e fecham à curiosidade. Parece um truque, um jogo de câmara clara, uma constelação de janelas e marquises que organizam as costas da cidade escondidas dentro de si. Mas, visto, bem visto, no modo como se revela, esse interior é sobretudo um exercício de agitação de véus. Uma composição aberta, uma campanha, um universo. Quase nada.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-01-30

foto&legenda # 246 (j.)

A ideia é tanto justa quanto singular. Num certo sentido, é uma ideia disposta à universalidade, transversal, sem lugar. Mas o que a define melhor é o facto de ser para uma estação inteira, todo o verão. Uma espécie de árvore em gestação plena, a perder os frutos. A perder os frutos nas nossas mãos ou no chão.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-01-29

foto&legenda # 245 (o jogo dos segredos)

Dizer não. Não, não é fácil. Subsiste sempre a sensação que a resposta poderia ter sido diferente. Não necessariamente para a mesma felicidade, mas ainda para a felicidade, para outra felicidade como a mesma felicidade. É quase como um trapézio. Há o risco, há a aventura, mas também há o treino, os actos domesticados pela experiência, pela recorrência. Mais uma vacina. Mais uma inquietação. Mais uma inquisição. Um solo estranho, mistura de pó, cinza e sangue. Tudo ordenado segundo os preceitos da catequese. Como uma espécie de equilíbrio mágico. Sem culpa. Quase sem nada, só com as cornucópias como disfarce. As cornucópias ficam sempre bem, não achas? Mostramos as cornucópias, as pessoas olham e esquecem o que queremos esconder.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-01-27

foto&legenda # 244 (passos para um adeus)

Posso discutir a alma contigo, o seu lugar, se é nos teus pés, se é no chão que pisas. Acredita em mim. E posso fazer mais. Posso levar-te ao colo, posso calçar-te, posso ajudar-te a ensaiar a coreografia. Também posso sair, sair simplesmente, sem qualquer palavra mais. Não, não posso, não consigo. Pelo menos mais uma palavra. Adeus.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-01-25

foto&legenda # 243 (dieu fumeur de)

Chamo-me Deus e, nos meus vagares eternos, fumo marlboros.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-01-24

foto&legenda # hors-série (comics express)

O medo é uma ideia. Apagada a ideia, o medo apaga-se também. Apaga-se em visibilidade, não em existência. Isto é, ao apagar-se a ideia, o motivo do medo deixa de estar visível, guardando-se diante de nós, mas como se tivesse sido recolhido na rectaguarda, numa posição que nos é anterior. Anterior a nós? Não, não faz sentido que seja assim. Porque isso seria domiciliar o motivo do medo nas nossas costas. Ou debaixo da nossa cama. Ora por que haveria o medo estar nas nossas costas? ou debaixo da nossa cama? Por que haveria o medo ser uma ideia? Tudo é ideia. Mesmo o que não é ideia, assim definido, é uma ideia. Nada é ideia, uma ideia. Concerteza. Mas isto, tudo, posto assim, para quê?, porquê? Para além de ser demasiada metafísica para uma banda desenhada, os fantasmas não são criaturas que mereçam tanta solenidade. Bem, pelo menos, é o que parece. Sim, claro, os fantasmas. O que haveria de ser?, o medo?, a ideia? Não é possível fotografar espectros como se fotografam ideias ou medos, pois não? Isto é, o que interessa o que é?, o que interessa o reflexo do que é? Uma fotografia, mas uma fotografia para quê? Sei o nome detalhado, quase que poderia dizer científico, de todos os tipos de alicate. É uma ideia. Isso assusta-te? Deveria assustar. Também sei manobrar moto-serras. Tu tens a mania que és ciclope. Olhas-me com um olho só e clic. Mas uma moto-serra mais facilmente corta carne, a tua, às postas, do que corta madeira. Isso assusta-te? Deveria assustar. Um homem tem as suas condições. Por isso, é bom, tão bom quão conveniente, que tenhas medo, que aprendas a ter medo. E depressa. Não, não é uma ameaça. Por que é que haveria ser uma ameaça? Não, não é uma ameaça. Tão pouco é uma ameaça velada. Olha, diz-me, já te disse que sei o nome de todos os tipos de alicate? Falei-te da moto-serra? Pode ser que.
fotografia © Jacques-Henri Lartigue
legenda © Sérgio Faria

2007-01-22

foto&legenda # 242 (a segunda culpa)

Uma vez na rua, não regressamos ao útero. Jogamos o tempo, aprendemos as diversas fronteiras e texturas do exterior, aprendemos os limites de que somos feitos e capazes, crescemos contra e dentro de um corpo fechado. O destino continua-nos aí mais pelas brincadeiras do que pelas culpas. A infância, assim, é a nossa primeira condenação, não a nossa primeira culpa.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-01-19

foto&legenda # 241

Neste fogo, não interessa o local. Não importa a qualidade do rastilho ou mesmo a proveniência do combustível. Relevante é a ignição. Mesmo toda a pólvora, toda a dinamite e demais explosivos sem faísca são meros produtos de falsos alquimistas.
Mas como dizia o avô do outro: O que arde cura!

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Mário Abreu

foto&legenda # 240 (kill mickey mouse)

Às vezes não é necessariamente o vício, é mais do que isso, é a ideia de fogo para além do chão que carregamos. Do chão que carregamos em que sentido? Do chão que carregamos. Sim, mas em que sentido?, que carregamos sobre nós? ou que carregamos sob nós? Do chão que carregamos, independentemente do sentido. Não percebo. O que importa é a ideia de fogo, o seu domínio, não tanto o chão que carregamos. Mas como?, como é que a ideia importa mais do que o chão? É mais ou menos o mesmo que ouvir do you wanna come over and kill some time? * e perceber do you wanna come over and kill Mickey mouse? Continuo sem perceber. Lume?, tens lume?

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria


* verso da canção «This modern love», incluída no álbum Silent Alarm (V2 Records, 2005), do grupo britânico Bloc Party.

2007-01-18

foto&legenda # 239 (posto impermeável)

É uma barreira invísivel, vítrea. Apercebes-te dela quando a chuva se condensa na sua superfície, quando, por respirares demasiado próximo dessa superfície, a embacias. Enquanto os estados da matéria não chocam, provocando uma espécie de choro, um derrame de sangue transparente, apenas parece um limiar de continuação, sem guarda. Uma janela talvez. Um olho franqueado, canal de luz. Mas, apesar da sua diafaneidade, é um véu.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-01-17

FOTO&LEGENDA - 61

Quais as árvores reais, quais as coisas diferentes do reflexo das coisas?
As árvores que (parecem) estar ao cimo das águas, tranquilas, tranquilas, ou as que (parecem) ser o seu reflexo no espelho das águas tranquilas tranquilas?
A arte também serve para iludir, isto é, para criar a ilusão, para interrogar, para inquietar, mesmo quando o tema tratado pelo artista transparece, transparente, em quietude e tranquilidade, como se o espelho do real fosse mais real que o que será (aparentemente) real, coisa. Tal qual as árvores. Com troncos, ramos, folhas, palpáveis.
foto de Pedro Gonçalves
legenda de Sérgio Ribeiro

foto&legenda # 237 (verso)

Talvez seja a forma do cristal que nos engana. Mas, sabes?, antes, muito antigamente, antes de quase tudo, apenas existiam imagens nos olhos e na superfície das lâminas ou das esferas de água.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-01-16

foto&legenda # 236 (Anjo Rendido)


O céu poderia ser o limite,

se as asas não tivesse perdido,

enquanto esperava pela noite

para me lançar num voo contido.

E agora, aqui estou, só e esquecido.


A longa espera levou-me a carne,

os músculos e a vontade.

A longa espera deixou-me preso,

contido na intenção e indefeso,

com a demanda pela metade.


Queiram os meus fracos ossos suspender

o peso dos sonhos por realizar

e esta será a morada a proteger,

pois por mais que me tente voltar a erguer

não conseguirei mais perto do céu chegar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Carmen Zita Ferreira

foto&legenda # hors-série (retorno eterno)

Já não posso dizer que Hamlet foi um momento apenas. Provavelmente repete-se e, através da repetição, permanece a mesma questão, a mesma insânia.
fotografia © Marina Abramovic
legenda © Sérgio Faria

2007-01-11

foto&legenda # 235

O propósito do olhar, tipo Lucky Luck em pleno duelo, num misto de confiança e desafio, decorre do tufo proeminente (tipo troféu), que orgulhosamente oculta um monte-de-vénus seguramente ainda munido de hímen. Se o permanente desafio é típico do género (é comportamento padrão herdado da avozinha da maçã), já a confiança é mais nos rafeiros, meio sentinelas meio capangas, que propriedade própria (a carne é fraca).
Conquistar tal território é cruzada tormentosa, pois as do ‘género’ primam em valorizar bichanices, em inventar obstáculos, dissimular armadilhas, etc.
Mas o troféu sempre insinuado para manter a esperança no cruzado.
Quem disse que o cão é o melhor amigo do homem não conhecia o bacalhau!
fotografia © Jock Sturges
legenda © Mário Abreu

2007-01-10

foto&legenda # 234

Apesar dos poetas a celebração é egoísta. Física. Animal. E se por ancestrais estudos ergonómicos são o negativo do outro, a submissão é pontualmente rejeitada com laivos de cobardia. Usa-se então, a garra que fixa o elemento fornecedor das coordenadas.

fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Mário Abreu

2007-01-09

foto&legenda # 233 (ida e volta)

Aquilo que há de sinal é o mesmo que há de limite, a margem.

fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-01-05

foto&legenda # 232

Maldito destino!
Porquê assim? Porquê eu?
Designio divino? Roleta da natureza?

Maldito fado!
E se fosse um orgulhoso e vistoso pavão?! Porque não uma altiva avestruz em qualquer parque mais ou menos animal? Ou mesmo gordo faisão de coutada.
Mas não. Mancabuzio de encolhidos ombros. Atarracado pela calva coroa, magro de tanto esperar. Envergonhado por este papel que me deram.

Triste sina, a minha.
Ter a morte como chefe de cozinha. A putrefação como tempero. Sobreviver ao
sucumbir doutros.

Aqui espero.
Aqui te espero.
Coitado de mim!
fotografia © Kevin Carter
legenda © Mário Abreu

2007-01-04

foto&legenda # 231 (o lugar dos mansos)

Quem vê cornos não vê corações. Foge!
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria