2006-12-31

hors-serie... e lugar

o gato em seu sofá

Costuma dizer-se que quem não tem cão caça com gato, mas não é (bem) o caso. Incapaz de colocar a foto (e o gato) onde deveria(m) estar, trago-a(os) para aqui.

a foto, como (quase) todas deste "bicho", é da Maria José


foto&legenda # hors-série (de crono a jano)

O reveillon era para ser lupino. Mas já não há lobos maus como antigamente. Também não há lobisomens ou o Wolverine. Somos cada vez mais as mesmas vítimas do capuchinho vermelho.
fotografia © Sheryl Nields
legenda © Sérgio Faria

2006-12-25

foto&legenda # hors-série (natividade, a senda apócrifa)

Cheira a عيد الميلا. Cheira a חג המולד. Cheira a Рождество Христово. Cheira, cheira. E a filhós também. E a bacalhau que veio da Norge, em bokmål, da Noreg, em nynorsk. Frohe Weihnacht, Klidné prožití Vánoc, Joyeux Noël, Kellemes Karácsonyt, Merry Christmas, Wesołych Świąt Bożego Narodzenia, Feliz Natal, Gaspar, Baltazar e Belchior. As batatas e as couves são da terra daqui. O barro do presépio também. O São Nicolau trepador é que não.
fotografia © David LaChapelle
legenda © Sérgio Faria

2006-12-24

Que se faça, sempre, luz...

O homem sempre procurou a luz. Par a não ficar dependente da lua e do luar. Para poder ver. Os outros e as coisas.
Nalguns lugares, há seis meses de noite e escuro durante vinte-e-quatro horas, a seguir e antes de seis meses de dia e luz e, às vezes, de sol descoberto vinte-e-quatro horas.
Houve tempo de o homem se alumiar à luz das velas, que, hoje, servem para emergências e outras finalidades, também de procura de luz fazendo e pagando promessas ao que se crê ser a Luz.
Quem já muito viveu disso se lembra. E lembra-se das lamparinas de azeite, e dos candeeiros de petróleo, e dos petromax, e de outras formas de romper a escuridão. De não ficar o homem dela cativo.
Hoje, ter electricidade já faz parte do acervo dos lares e das comunidades, até de aldeias perdidas em interiores.
Mas o homem continua procurando a luz. Metaforicamente, tantas vezes procurando-a, com algum desespero, no fundo de túneis em que se mete ou em que deixa que o metam.

Fotos de Pedro Gonçalves
Legenda de Sérgio Ribeiro

FOTO&LEGENDA - 60

A vida, por vezes – tantas vezes… –, parece portas que, à imagem dos dias, se vão abrindo à nossa frente, em cada hora menos que aquelas que, nas nossas costas, se vão fechando, porque vividas foram, porque por elas passámos sem entrar, porque as vimos, ou julgámos, fechadas.
E assim são as portas, os dias, a vida. Assim é a vida, percorrida até um buraco negro e fundo onde não entram os raios de sol que atravessam os caminhos que se fazem caminhando.
Foto de Pedro Gonçalves
Legenda de Sérgio Ribeiro

2006-12-22

foto&legenda # hors-série (caminhos de natal)

Aqui não há renas e raramente neva. O que obriga o pai Natal a outros trilhos, caminhos já feitos, batidos, de berma certa. Por isso vai e vem ele por aí, em modo arcaico, pré Coca-Cola, quase a arrastar os pés. Habitualmente o homem carrega um saco grande, remendado, composto de retalhos, e nada sabe sobre o globalpositioningsystem. Palmilha todo o território, passo a passo, devagar, arrastado. Como não há roteiro exacto para a sua ronda, de quando em quando, por contigência de quem não usa bússula e apenas conhece - de ler - a morada dos seus destinatários, segue os sinais. E acontece que, acaso necessite pensar ou ponderar sobre algo antes de decidir que sentido ou trajecto seguir, pega um cigarro e acende-o.
- Peço desculpa, mas estes sinais não têm legenda.
- Pois não.
- Queria orientar-me e não consigo.
- Problema seu e problema de orientação.

O pai Natal raramente interpela circunstantes.
- Eu sei, não obstante gostava de saber como sair daqui.
- Olhe, vá andando e logo vê.
- Sim, mas tenho duas hipóteses.
- Até tem mais, se admitir ficar aí estacionado, na expectativa da morte da rês pequena, ou voltar para trás.

E raramente o faz porque os circunstantes têm o hábito de, por desejo mais ou menos soberbo, tentar ficar com o que ele carrega.
- Concerteza, mas falava das duas hipóteses que tenho diante de mim, a direita ou a esquerda.
- Creia, a direita é má guia, a esquerda é para fugir.
- E o que significa isso?
- Não queira saber, custar-lhe-á caro.

Por isso tende a evitar estabelecer diálogo com os estranhos que guardam as encruzilhadas.
- Mas eu quero saber.
- Para saber isso, antes, tem de me entregar esse saco e todo o seu conteúdo.
- Seja feita a vossa vontade.

Apenas o faz em caso de estrita necessidade. E quase sempre para perder. Se seguiu a indicação inferior, então, perdeu mais ainda. Nunca mais alma alguma o tornou a ver.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Eliz B.

2006-12-20

foto&legenda # 228 (acorde para estranhos)

Tirar da pele o enxame, trinar o corpo das cordas. Estranha flor.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-12-18

foto&legenda # 227 (filigree and shadow)

Há dois modos de carne, não tenhas medo. O negativo é ainda a identidade.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-12-15

Padeço de um orgulho estranho por sentir-me amigo de uns quantos gajos que fotografam com alma. Eles são de Ourém e isso provoca-me uma sensação de alívio também estranha. Mas isso é o que menos interessa. Espreitem aqui o produto da recente viagem do Paulo (Vaz Henriques) a New York city. Há slides que, a visto, nos dão o mundo. O mundo inteiro. Luz, sombra, pessoas, lugares.

foto&legenda # 226 (face a face)

Sob a luz, assim como contra o espelho, há uma duplicidade no corpo. Há o que é e o que se vê, há a presença e a representação, há a imanência e o reflexo, há o verbo, forma de princípio, e há o mistério, todas as continuações.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-12-13

foto&legenda # 225 (the ground beneath her feet)

Para além do chão, os instrumentos para o caminho são os mesmos que servem a distância.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-12-11

foto&legenda # 224 (when the saints go marching in)

Enquanto vertigem, somos mais carrossel do que balancé, rodados sobre nós próprios, em ritmo timbrado pelas cores que a velocidade distribui ao nosso cerco.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2006-12-08

*foto&legenda* # 223 (horizonte)

A lonjura apaga as coisas. A essa elisão acrescente-se o tempo derramado. Sobre a distância, o que resiste próximo vale como sinal. Porém, porque à distância não se sabe, para evitar ilusões ainda é necessário espreitar. Olha-se o que é fora, a rua, como se vigia da gávea. Reitere-se, a lonjura apaga as coisas. À distância não se sabe. Espreita-se. Para além disso, é necessário interpretar os presságios. Encontram-se, assim, o que já não se vê e o que virá. Às vezes as janelas são acessos a tal encontro. Também servem para defenestrar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-12-07

foto&legenda # 222 (Kafka de pernas para o ar)

Experimentaram-lhe todas as posições. A morte assentava-lhe melhor assim.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-12-06

FOTO&LEGENDA - 59

O corpo nu. Belo. As mãos - as suas e as de outro - vivendo como parte do corpo. O corpo outro vibrando, envolvido por mãos outras.
A recusa da vergonha dos corpos nus.

Foto de Pedro Gonçalves
Legenda de Sérgio Ribeiro

FOTO&LEGENDA - 58

Os corpos. O encontro dos corpos nus. A beleza da nudez.

Foto de Pedro Gonçalves
Legenda de Sérgio Ribeiro

2006-12-05

foto&legenda # 219 (adagio sobre a invisibilidade)

Olhando, não se vê a convergência das várias mãos que realizam uma arquitectura intangível, suspensa e dissoluta nos intervalos do silêncio. O que significa que, invisível, há um capítulo para além da pauta, domiciliado nessas mesmas mãos que acordam o mistério escrito e morto no papel.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-12-04

foto&legenda # hors-série (exercício de encomenda)

Há momentos em que se guarda a olhar o seu redor. Tem a sensação que, ao fazê-lo, o mundo se suspende e adquire uma nitidez que, sob o regime dos actos, sob a vertigem dos estados comuns, não é possível perceber. Aceita por certeza a existência de uma ordem que só se revela mediante quietude, quando nenhum gesto contamina ou produz interferência sobre essa mesma ordem. Não é capaz de explicar de onde proveio este seu modo de inclinação ao mundo. Já admitiu a sua interrupção. Não obstante, nunca a tentou e o modo persistiu, como um dispositivo alojado em si. Julga que assim acontece por, enquanto plataforma, a distância a que vive permitir-lhe operar um discernimento que não é frequente nos auditórios. Já ensaiou o mesmo exercício na rua ou na presença de outros, porém não surtiu efeito semelhante ou sequer aproximado. Para além disso, a projecção a que o exercício obriga também necessita de resguardo. E a uma maior aproximação ou intimidade tende a corresponder cegueira. Quanto a isso, no entanto, ela imprime uma obstinação de carpinteiro, não dispensando o tacto. A miragem tem limites.
fotografia © Mario Sorrenti
legenda © Sérgio Faria

2006-12-02

FOTO&LEGENDA em livro

Deste "blog", que já tem perto de 300 "posts" (este é o 291º), retiraram-se sete dezenas com tópicos (nas fotos e/ou nas legendas) que dizem respeito a Ourém e a oureenses.
Formam um livro que a Som da Tinta editou com o entusiasmo de estar a dar mais um contributo (bom ou mau, serão outros a julgar...) para animar e "mostrar" a terra (de) que somos.
Será lançado no fim de semana de 8 a 10 de Dezembro. A data e hora definitiva será anunciada em próximo "post".
A capa, de que se reproduz a maquete, é do Filipe Saraiva e os autores/responsáveis (das fotos & das legendas, e das legendas & das fotos) são o Nuno Abreu, o Sérgio Faria, o Pedro Gonçalves e o Sérgio Ribeiro (aqui por ordem alfabética de apelidos, embora na capa e no livro seja a dos nomes, assim se satisfazendo dois critérios...), com algumas preciosas ajudas.
Fica a notícia, retirada do "blog" da Som da Tinta.
Toda a concentração, os olhos só vêem a bola, os dentes estão cerrados, a boca apertada, sem lábios, o corpo desequilibrado com os braços a fazerem de asas e leme no movimento para que os pés, o direito, acerte no alvo que é a bola e a bola acerte no alvo que é a baliza ou um companheiro. Ao fundo, na parede, o emblema do "nosso" Atlético.
A harmonia e a beleza dos gestos, da alegria da juventude, também da máquina que os homens inventaram para fixar o que deve ser guardado.
E guardado está.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Ribeiro

2006-11-30

foto&legenda # hors-série (exercício de obsessão)

A par do gelo, o espelho é o maior enigma da natureza e dos arredores. Mais misterioso do que o espelho é apenas o reflexo, o negativo, que alguém procura no próprio espelho. Durante muitos anos ela limitou-se a olhar o espelho com utilidade, para, por exemplo, compor o cabelo ou aplicar o blush. Um dia, porém, a imagem que o espelho lhe devolvia pareceu-lhe com uma integridade excessiva, falsa. Por sortilégio, o espelho precipitou-se sobre o chão e estilhaçou-se. Primeiro, de pé, deixou-se a contemplar aquela decomposição improvisada pelo acaso. Depois, debruçada, procurou-se nas diversas parcelas do espelho partido, como se em cada pedaço houvesse a impressão de uma parte de si. Ficou demoradamente a tentar reconstruir-se naquele puzzle de imagens repetidas consoante o talho dos estilhaços. Não disfarçou a avidez emprestada à procura de si. Mas uma espécie de prestidigitação impediu-a de ver-se destroçada naquele chão. Conformou-se. A fome tem limites.
fotografia © Mario Sorrenti
legenda © Sérgio Faria

2006-11-28

foto&legenda # hors-série (exercício de desperdício)

Durante muitos anos, enquanto preparava o pão e o vinho sobre a mesa, pronunciou a oração que conhecia desde a tenra infância. Ao princípio por hábito, depois por devoção, repetia as palavras em voz para, por esse exercício, ouvindo-se, confirmar a fé que já começava a exaurir-se dentro de si. Não recorda o dia em que pela primeira vez calou essa prece. Tão pouco recorda o motivo por que alterou o seu comportamento. Apenas tem memória do tempo em que, enquanto preparava o pão e o vinho sobre a mesa, rezava. E tem essa memória não porque tenha lembrança das palavras do enunciado da graça, do encadeamento e do ritmo dessas palavras, mas porque, recorda, então sobre a mesa havia sustento sob a forma de corpo e de sangue. Hoje, porém, já não é capaz de imaginar essas formas. É assim desde o dia em que entornou o cálice e se guardou a observar o vinho derramado a estender-se até ao limite da mesa, onde começava a pingar, prolongando-se a mácula sobre o soalho. A fé tem limites.
fotografia © Mario Sorrenti
legenda © Sérgio Faria

2006-11-27

foto&legenda # hors-série (coreografia da invisibilidade)

Esta é a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível
fotografia © Tina Modotti
legenda © Sérgio Faria

2006-11-25

foto&legenda # 216 (et facta est lux)

Talvez a propriedade mais urbana seja o permanente corte dos sombreados, a resiliência dos edifícios contra o crepúsculo, o avesso do império solar. Aliás, a cidade, se não fantasma, é o contraste do sol, o sol ainda ou mesmo nocturno.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-24

foto&legenda # 215 (foreign affairs)

Αρχιμήδης avisou que com uma alavanca e um ponto de apoio era capaz de, por manobra, mover o mundo. É dele que quase sempre recordamos tal audácia, não de quem o corpo anónimo, após Άτλας, ainda sob castigo divino e sem asas, carrega esse mesmo mundo sobre os seus ombros, para, a firme, segurar o céu. Os homens são loucos.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-23

foto&legenda # hors-série (condição)

onde e quando somos é, assim, como e porque somos.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © 3ás

2006-11-22

foto&legenda # hors-série (les uns et les autres, ii)

E ela, a Lou, é ainda mais nova do que o mais novo da quadrilha deste blog.
fotografia © Inez van Lamsweerde, Vinoodh Matadin e Pirelli
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # hors-série (les uns et les autres, i)

Urgência!, urgência! Ela, a Sophia, é ainda mais velha do que o mais velho da quadrilha deste blog. O que significa que, pelo menos, há o(s) velho(s) e a(s) outra(s) que, embora mais, nem tanto.
fotografia © Inez van Lamsweerde, Vinoodh Matadin e Pirelli
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 214 (a máquina)

Uma máquina para espreitar o mundo, gritava ele, preciso de uma máquina para espreitar o mundo, uma máquina que, de cima, permita cortar a escuridão, uma máquina que me erga, que me levante... Entretanto, alguém que passava, lamentou o homem e o seu grito. Desconhecia que houvesse alguma máquina que servisse para espreitar o mundo. E para quê uma máquina para espreitar o mundo?, se o mundo está diante de nós. Para quê uma máquina que nos erga?, uma máquina que nos levante?, se o mundo é o que pisamos e nenhuma necessidade há em reinventar as hierarquias. É apenas uma máquina o que necessito, uma máquina para espreitar o mundo. O mundo não vai mudar por causa disso.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-21

foto&legenda # 213 (alguém aí)

Há ainda aquilo que mais somos incapazes de pronunciar, um modo entranhado de entranhas a pulsar, a dança dos olhares sem coreografia exacta, a aproximação pelos toques, pelos corpos. Agora imagine-se isto dissolvido na paisagem urbana, incêndio invisível, inscrito nas vitrines. Apenas para que o que é legível permaneça indizível e todos saibam.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-20

foto&legenda # 212 (city of blinding lights)

As luzes da maçã grande escondem arquitecturas prediais, são translúcidas, iluminam e cegam, revelam.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-18

embora não fosse necessária a sua exposição imediata, a fotografia do Paulo e as fotografias do Nuno, estampadas abaixo, não mereciam esperar. há, no entanto, o prejuízo inerente à pressa. a oração esboçada para o rodapé de cada fotografia padece de injustiça. mas antes isso do que a sua, das fotografias do Paulo e do Nuno, invisibilidade ou demora. se sofremos a urgência, também a podemos exercer.

foto&legenda # 211 (dilúvio comum)

Bem sei. Precipitação, não é? Esta não é a oportunidade para lavar os pés. O lustro, que não é, enganou-me. Engano-me tanto. Vou ficar aqui a olhar apenas, a contemplar. Sei lá que mais. Apetece-me natureza, não me apetecem termas. E o dilúvio?, o dilúvio já foi há tanto tempo. Agora só acontecem réplicas. Estamos na era das coisas comuns, das coisas que se repetem.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 210 (postigo de ver ao mundo)

Que foi muito o que vi passar diante de ti, tardes espraiadas gastas a olhar o pátio, os pequenos pássaros a tomar o grão no bico, o vento a agitar a folhagem, o sol a secar as vagens. Quantas horas foste cúmplice de mim e, por vigia, me mostraste o mundo. Quantas horas me guardaste do frio e da chuva. Quantas vezes, tantas, foste o espelho que procurei, para me saber em casa. O que digo agora já é pouco, sabes? Ficarás por mim, porque eu vou-me embora. Não voltarei. Deixo-te aberta, que é como melhor te recordo.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 209 (limiar)

Não, não é o cansaço que me detém aqui. É a preguiça e também a imaginação de uma dúvida. Além, aquela divisão após a porta, é o pressuposto ou a consequência da luz? Qualquer que seja a resposta, enquanto o sol não for amortecido na noite, guardar-me-ei nesta sombra. Espreitarei além quando existir lua altiva, não antes. O ouro astral faz-me indolente e sem radar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 208 (alados, iii)

Não me é difícil crer em anjos, que voam e manobras assim. Cresci a acreditar no Super-Homem e na kryptonite, página a página. A minha imaginação está treinada para esse tipo de estranhezas.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 207 (alados, ii)

I can fly
But I want his wings
*
É majestade, mas falta-lhe ser falcão para ser mais, voar até patamares superiores, saturno, o sol ou mais além.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

* versos da canção «Gabriel», dos Lamb, incluída no álbum What Sound (Koch Records, 2001).

2006-11-16

foto&legenda # hors-série (limite)

Prenunciava a forma de uma invisibilidade. Havia subtilezas. Havia um modo de habitar-se, conjugado com a necessidade de confirmar o corpo. E havia o sintomático desperdício das lágrimas, como se fosse uma espécie de higiene da culpa. O que exibia, enquanto risco, era a firme e exacta tradução da sua realidade. Era o seu fim também, o avesso do seu simulacro.
fotografia © Janosch Simon
legenda © Sérgio Faria

2006-11-15

foto&legenda # hors-série (mesmidade e encontro)

Havemos de encontrar diferenças no que é o mesmo, não porque o mesmo seja diferente, mas porque o mesmo é o que não encontramos. E havemos sempre. Não porque seja sempre assim, mas porque às vezes fechamos os olhos.
fotografia © *
legenda © Sérgio Faria
* acima vê-se Carole Bouquet. a sua pessoa foi filtrada pelos olhos e suspensa por um movimento de dedo de alguém. não obstante os esforços envidados, não consegui identificar quem é esse alguém, pelo que é com angústia que confesso a incapacidade para identificar o autor da fotografia.

2006-11-13

foto&legenda # 206 (cartograma)

Também na palma da tua mão há itinerários principais e complementares e, por isso, para ela, se justifica um mapa. Não para que quem queira se orientar melhor aí, mas para que, indo por esse enredo, seja possível a alguém perder-se mais facilmente.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-11

foto&legenda # 205 (os [n]ossos)

evoé! à Catarina e ao Pedro, no exílio londrino,
e ao André e ao Paulo, em excursão a New York
Há nossos que foram e estão lá longe. Até onde as mãos não alcançam, alcança a saudade e a memória de quando eram próximos. Um dia tornarão. É esta certeza que ainda já os vai aproximando daqui.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-09

foto&legenda # 204 (tudo o que esta face mostra)

Anda as suas orações, que são as minhas e as vossas orações também. Anda entre o mundo e os mundos, levando-as consigo. Não sabe outro modo de se ser e de me e de vos ser leal. É pureza e mais ainda é com o que leva consigo, com o que partilha, que é meu e vosso também. Eu, isso, não sou, não consigo ser. Falta-me a justiça, faltam-me quilates disso. A vós não sei.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-08

foto&legenda # 203 (cínico com cê de cão)


A verdade é que abrimos a boca mais vezes do que aquelas que são necessárias. Um cão não. Um cão é preciso. Ladra o que tem a ladrar, nem menos nem mais. O instinto é a chave da sua precisão. Mas nós, envolvidos com deuses e com filosofias, não somos como um cão. Já não somos como um cão. Pelo que, à medida que nos afastamos desse referencial cínico, deixamos de ser capazes de lidar com a simplicidade das coisas, começamos a inventar e a complicar, renunciamos, enfim, à natureza. Um cão não, é sempre económico e exacto. Ladra o que tem a ladrar, nem menos nem mais.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-07

foto&legenda # 202 (geografia da ausência)

Os ausentes e os convocados, primeiro. Os esquivos, depois. E uma presença, que não se vê, a dizer os lugares vazios são ainda uma modalidade de habitação. Um têdois ou um têtrês.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-06

foto&legenda # 201 (se almardente)

Nada (par)a fazer. Excepto incensar a quietude com nicotina, preenchê-la com demora e contemplação, com o tempo de um cigarro, e, ao mesmo tempo, viver o fio de vida que traz.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-02

foto&legenda # 200

" Se a chuva cai e o sol não sai
Penso em você
Vontade de viver mais
Em paz com o mundo e comigo." *

Peito feito sob cabeça erguida,
Maneira de estar
Sorriso sincero com brilho no olho,
Modo de ser
Risco na face, emblema no coração,
Farda assumida e sentida
Costas largas e seguras,
Orgulho e vaidade.

Quanto maior a embarcação,
Mais firme a âncora.

* Excerto de poema de Chico César

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Mário Abreu

foto&legenda # 199

A mesma água é para o cereal e para a mó. A mesma água é também para a farinha. A mesma água consagra-se no pão e em quem a sede é saciada. A mesma água é o levantamento da luz, a força. A mesma água é com o que lavamos o corpo e fazemos o batismo. A mesma água corre onde habitamos, entre paredes. A mesma água que, origem, é de onde viemos.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-01

foto&legenda # 198 (caminhos, ii)

O cavalo de ferro avança. Poucaterra, poucaterra. Avança pelo caminho certo e traçado também a ferro. Poucaterra, poucaterra. Ferro sobre ferro, o cavalo de ferro é uma máquina. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro adianta-se marcado por uma tabela. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro corre pelo corredor, ultrapassando estações e apeadeiros. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro, demónio em movimento infrene, sopra a velocidade, ao mesmo tempo que amassa a terra. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro tem um fôlego eléctrico. Poucaterra, poucaterra, poucaterra... Depois, o cavalo de ferro, máquina, já passou.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria