2008-01-30

foto&legenda # 395 (o que as palavras podem)

Muito do cuidado da humanidade foi investido na decifração de um mistério, o modo de mostrar em quieto o balanço do movimento. Afirmar que isto é a síntese sublimada de todas as tensões é afirmar pouco. Aliás, talvez não seja possível afirmar mais. Em algumas circunstâncias, quando a imagem é toda a narrativa possível da zoopraxografia, a mancha e o espectro dinâmico que dimana daí, as palavras podem pouco. Mais do que isto seria necessariamente cinema, uma invenção para imitação do que mexe.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2008-01-28

foto&legenda # 393-394 (canção de abalada)

Gestos que correm sobre os gestos, que os perseguem, em sequência que se chama dança. Embalo ou (ar)rumo do corpo, que vai e vem, que quebra e cumpre e ergue, que revolve e foge e, sem ficar quieto, fica ali, onde está, de onde não sai ou sai apenas para voltar. O corpo é a sede de todos os regressos, onde torna infinito o corpo mesmo, conduzido a si como prometido aquando a canção de partida. Que, depois, perdendo-se ou não, suporta a voz, abre o silêncio. É o que se vê, é o que se ouve. Um só corpo, uma só voz.
fotografias © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-01-25

foto&legenda # hors-série (ίκαρος no balancé)

Sabes?, era o tempo e o lugar em que fingíamos ser pássaros, em que ainda não tínhamos aprendido a dizer as culpas e os segredos para dentro das árvores. Bastava sentarmo-nos, segurarmos a corda de um e de outro lado, darmos um impulso para começar, erguermos os pés e, depois, era como se um sopro nos levantasse mais ainda e nos levasse, para a frente e de volta, a planar, num movimento muito diferente do que o pião e nós quando o imitávamos conseguíamos no chão.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-01-23

foto&legenda # hors-série (naturezainda morta)

Ainda as coisas. São e são na forma em que as ordenamos e pomos. Aliás, mesmo mortas, as coisas tendem a preservar a geometria que lhe foi emprestada. A degradação dessa geometria é o processo da sua decomposição. O que significa que as coisas desaparecem pela nossa distância e pela deterioração da sua forma.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-01-21

foto&legenda # hors-série (posto mistério)

As coisas. São e mesmo assim não são, se não estivermos próximos delas. Num certo sentido, as coisas existem conquanto as frequentamos, na medida em que são os nossos tempo e alcance que as definem. A distância, que é necessariamente uma relação que decorre da nossa posição, se numa escala revela os pormenores das coisas, em outra escala resolve as próprias coisas, como se fossem inexistentes. Afastamo-nos e, não obstante certas ou permanentes, as coisas desaparecem.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-01-18

foto&legenda # hors-série (felis sylvestris, versão quântica)

Depende da perspectiva, depende da espera. Em a quem chamas gato de Schrödinger há um leopardo a crescer. Corre, se és rato. Fica, se queres testemunhar. Que o gato de Schrödinger não é gato. Nem aristogato, nem de Cheshire, nem das botas. É uma conjectura. Ou, se preferires, uma hipótese. Como a que tens. Agora escolhe, ou corres ou ficas. Morrer é mesmo o teu destino.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-01-16

foto&legenda # 392 (games without frontiers)

Perguntamos, o que nos separa da frente?, e ficamos a imaginar o que depende dos passos apenas, até onde poderíamos chegar, sem a transmissão e o abrigo das cápsulas que nos levam e protegem.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-01-14

foto&legenda # hors-série (prolegómenos ao manifesto dos soltos)

Algemas?, somos cada vez mais, as íntimas incluídas. Διογένης?, somos cada vez menos. Desde Павлов que salivamos e sabemos como operam os dispositivos estimulantes. Desde Freud que ladramos baixinho e uivamos às escondidas. Somos a única legião que será.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2008-01-11

foto&legenda # 391 (a herança dos famas)

Sabes?, antigamente havia uma coisa chamada livro, que é mais ou menos o mesmo que hoje é a televisão. O pai do meu pai leu-lhe um, o que o pai do pai do meu pai lhe tinha lido antes, o mesmo que o meu pai me leu também, este, do qual estou a sacudir o pó, que eu vou ler-te agora. Começa assim. Dizes. Que deus engravida nos frutos. Que, porque a adiantar-se, o teu relógio tem mais vida do que o tempo certo. Sei quem és. Foste tu que mataste o meu pai. Prepara-te para morrer também.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-01-09

foto&legenda # 390 (casa dos testemunhos)

Foi uma casa. O que resta nas suas ruínas é a dimensão do que foi e o lado de fora, onde começava e terminava a volta do sanatório. Conta-se que naquele lugar houve quem leu Der Zauberberg, na edição original, com o propósito de encontrar ali a mesma vibração que Castorp encontrou nos alpes suíços. Mas não se sabe se é verdadeiro o que é contado. Que ali também foram testemunhados espectros diáfanos e com formas desvanecidas, nem cronópios nem famas, testemunho que estorvava mais a respiração do que a tuberculose. Não se sabe. O que se sabe é que por ora, tão sonâmbula no seu abandono, a casa quase só abriga o fio remoto das doenças e dos recobros ou das mortes que aconteceram dentro de si. E que ali já ninguém testemunha outra coisa, sequer a casa que foi, excepto o tamanho que ainda reserva.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-01-07

foto&legenda # 389 (to infinity, and beyond!)

A ideia de infinito é grande demais. Nunca fui capaz de meter deus dentro dela. Tentei, asseguro, mas nunca consegui, por parecer-me ele pequeno para ideia tamanha. Tentei também com o sol, que parecia maior, por ter mais dias do que aqueles que deus fez, não sete apenas, e ter mais luz. Porém apercebi-me que também o sol não era matéria que preenchesse com suficiência a ideia de infinito. Pode o sol não apagar-se todos os dias, ser permanente, mais antigo do que deus, mas há uma ilusão que nega a sua infinitude, o seu pôr-se ao final de cada tarde. É por causa da noite, sobretudo por causa da noite, que é aqui, não é do outro lado do mundo, que é aqui, reitere-se, que o sol não serve para encher a ideia de infinito. Poderia admitir a rotação do infinito, é uma hipótese. Mas, fatigado de tentar, acabo por deixar a sua ideia aberta. Talvez seja melhor assim. No infinito cabe sempre mais qualquer coisa.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2008-01-04

foto&legenda # 388 (casulo)

Pões o pé, pisas, andas. Outros vão no teu encalce. Porque, comum e redondo, o chão é o mesmo. Agora, vê lá, não caias.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2008-01-02

foto&legenda # 387 (shadowplay)

My kingdom for a shadow.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria