2008-05-24

foto&legenda # hors-série (das continuações, iii. do not past)

Aquilo que costuma dizer-se é que a arqueologia traz o passado à superfície, entendendo-se a superfície como presente. Mas se, à procura de Maio, levantas e apanhas o chão, reencontras a praia desse mês? Não. Ao abrires passagem até à terra firme, corrida toda a areia, quanto muito encontras o tempo perdido entretanto, um chão pisado muitas vezes, sem que tenha sido evidente como fundamento dos teus passos e dos passos dos outros. É isto o mais exacto que podes servir-te. E não adianta discutir a dimensão das decisões tomadas antes, se pequenas, grandes ou assim assim. O passado, o teu e o dos outros, corre atrás de ti, no teu encalce, adiantando-se ao ritmo do teu avanço e do avanço dos outros, concentrando-se e dissolvendo-se simultaneamente mais do que na tua sombra, na tua carne, sendo-te intimamente estranho. O jogo do tempo é duplo e duplica-te também, em recordações e esperanças, em atraso e envelhecimento, em um só corpo, no qual e pelo qual hás-de viver e continuar a morrer.
fotografia © Tiago Gonçalves
legenda © Eliz B.

2008-05-17

foto&legenda # hors-série (das continuações, i)

Escrevo vezes demasiadas o medo de não conseguir ser justa. Não é um medo deveras mais do que é um escrúpulo. Perturba-me sobremodo a hipótese de não conseguir ponderar escritos, ditos e factos, de falhar a medida e repetir uma escala inferior, uma posição dobrada, estreita ao chão, ofendendo por defeito o que está documentado ou foi feito. De igual modo perturba-me o excesso, declarar a mais, inflacionar, ultrapassando o arquivo ou o seu motivo. Por desvio menor ou maior, de défice ou acrescentado, falhar é o princípio da oportunidade que permite tentar outra vez, eu sei. Mais do que qualquer outro elemento, a carne não engana ou ilude tal facto. A morte demora, continua, sim. Eu também. Não me recolho, não me esgoto nas costas. Por isso quando desisto é por voto de justiça, por na circunstância sentir errar o calibre, não por cuidado de defesa, instinto de preservação ou temor. Repito, como a morte, eu continuo também.
fotografia © Tracey Emin
legenda © Eliz B.

2008-05-11

foto&legenda # hors-série (das continuações, ii. cinquenta dias depois)

Já não abrimos o frigorífico há muito tempo. Dói-nos o cotovelo de tanto levantarmos o braço direito para assinalarmos perfunctória e solenemente a nossa fome. Até é provável que a validade dos iogurtes já tenha expirado. Estamos cansados de passar o pano sobre os jogos psicológicos, sobre as perdas e os ganhos do corpo a corpo, sobre as esperas. Os brinquedos estão a apanhar pó sobre a cómoda, estás a ver?, o napperon está encardido. O tempo está a passar. Deveria haver uma agência de salmos, para que não fosse necessário procurá-los em páginas de papel de bíblia. O tempo passa. Ainda há quem mantenha o olhar embrulhado. Os pés não têm escrúpulos assim, pisam. Talvez a modernidade esteja a ficar fora de moda. Talvez tenhamos que avançar, subir escadas, assentar melhor os pés sobre as coisas.
fotografia © Ed Fox
legenda © Eliz B.

2008-05-03

foto&legenda # 412 (unitive knowledge of the godhead)

É uma história de rapazes, como nos filmes em que há muita gasolina derramada e os carros explodem. Começou com uma confissão, tinham sonhos, tinham sombras, casacos de ganga para enganar a condição. Não queriam ser mecânicos ou carteiros, por não gostarem de entregar cartas de amor. Por isso ou por qualquer outro motivo, deus atribuiu-lhes uma ordem de restrição. Não poderiam aproximar-se do desvio, sequer pelo lado da dúvida ou da tentativa. Deveriam portar-se bem, com esforço e esmero, e crescerem, até serem homenzinhos. O fado, a fé e o futebol ajuda-los-iam. Mas cresceram fora do trilho, a ouvir música estrangeira e maluca, a jogar à batota e a baixar as cartas sobre mesas com cinzeiros cheios de beatas, sentados com o comando da playstation em cima dos joelhos e os polegares a conduzirem o manípulo, com a garrafa de cerveja mole entornada ao lado, no sofá, no chão. Pensaram em coisas proibidas, aventuras, pornografia, sondagens, excessos e emigração. Agora fazem downloads piratas e fumam em pose de gangster. Durante a semana usam gravata, combinada com as camisas passajadas impecavelmente pela mãe e os fatos. Dominam os logos, as siglas e o teclado do telemóvel. Deus perdeu-lhes o domínio e os onze por cento da taxa social única. Já não mandam o curriculum vitæ à amostra, têm a fotografia no hi5. São o princípio e a continuação reencarnada de Οδυσσέας.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria