2006-11-30

foto&legenda # hors-série (exercício de obsessão)

A par do gelo, o espelho é o maior enigma da natureza e dos arredores. Mais misterioso do que o espelho é apenas o reflexo, o negativo, que alguém procura no próprio espelho. Durante muitos anos ela limitou-se a olhar o espelho com utilidade, para, por exemplo, compor o cabelo ou aplicar o blush. Um dia, porém, a imagem que o espelho lhe devolvia pareceu-lhe com uma integridade excessiva, falsa. Por sortilégio, o espelho precipitou-se sobre o chão e estilhaçou-se. Primeiro, de pé, deixou-se a contemplar aquela decomposição improvisada pelo acaso. Depois, debruçada, procurou-se nas diversas parcelas do espelho partido, como se em cada pedaço houvesse a impressão de uma parte de si. Ficou demoradamente a tentar reconstruir-se naquele puzzle de imagens repetidas consoante o talho dos estilhaços. Não disfarçou a avidez emprestada à procura de si. Mas uma espécie de prestidigitação impediu-a de ver-se destroçada naquele chão. Conformou-se. A fome tem limites.
fotografia © Mario Sorrenti
legenda © Sérgio Faria

2006-11-28

foto&legenda # hors-série (exercício de desperdício)

Durante muitos anos, enquanto preparava o pão e o vinho sobre a mesa, pronunciou a oração que conhecia desde a tenra infância. Ao princípio por hábito, depois por devoção, repetia as palavras em voz para, por esse exercício, ouvindo-se, confirmar a fé que já começava a exaurir-se dentro de si. Não recorda o dia em que pela primeira vez calou essa prece. Tão pouco recorda o motivo por que alterou o seu comportamento. Apenas tem memória do tempo em que, enquanto preparava o pão e o vinho sobre a mesa, rezava. E tem essa memória não porque tenha lembrança das palavras do enunciado da graça, do encadeamento e do ritmo dessas palavras, mas porque, recorda, então sobre a mesa havia sustento sob a forma de corpo e de sangue. Hoje, porém, já não é capaz de imaginar essas formas. É assim desde o dia em que entornou o cálice e se guardou a observar o vinho derramado a estender-se até ao limite da mesa, onde começava a pingar, prolongando-se a mácula sobre o soalho. A fé tem limites.
fotografia © Mario Sorrenti
legenda © Sérgio Faria

2006-11-27

foto&legenda # hors-série (coreografia da invisibilidade)

Esta é a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível como a mão, mão quase morta, que embala e anima, anima de alma, o corpo suspenso, invisível
fotografia © Tina Modotti
legenda © Sérgio Faria

2006-11-25

foto&legenda # 216 (et facta est lux)

Talvez a propriedade mais urbana seja o permanente corte dos sombreados, a resiliência dos edifícios contra o crepúsculo, o avesso do império solar. Aliás, a cidade, se não fantasma, é o contraste do sol, o sol ainda ou mesmo nocturno.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-24

foto&legenda # 215 (foreign affairs)

Αρχιμήδης avisou que com uma alavanca e um ponto de apoio era capaz de, por manobra, mover o mundo. É dele que quase sempre recordamos tal audácia, não de quem o corpo anónimo, após Άτλας, ainda sob castigo divino e sem asas, carrega esse mesmo mundo sobre os seus ombros, para, a firme, segurar o céu. Os homens são loucos.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-23

foto&legenda # hors-série (condição)

onde e quando somos é, assim, como e porque somos.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © 3ás

2006-11-22

foto&legenda # hors-série (les uns et les autres, ii)

E ela, a Lou, é ainda mais nova do que o mais novo da quadrilha deste blog.
fotografia © Inez van Lamsweerde, Vinoodh Matadin e Pirelli
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # hors-série (les uns et les autres, i)

Urgência!, urgência! Ela, a Sophia, é ainda mais velha do que o mais velho da quadrilha deste blog. O que significa que, pelo menos, há o(s) velho(s) e a(s) outra(s) que, embora mais, nem tanto.
fotografia © Inez van Lamsweerde, Vinoodh Matadin e Pirelli
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 214 (a máquina)

Uma máquina para espreitar o mundo, gritava ele, preciso de uma máquina para espreitar o mundo, uma máquina que, de cima, permita cortar a escuridão, uma máquina que me erga, que me levante... Entretanto, alguém que passava, lamentou o homem e o seu grito. Desconhecia que houvesse alguma máquina que servisse para espreitar o mundo. E para quê uma máquina para espreitar o mundo?, se o mundo está diante de nós. Para quê uma máquina que nos erga?, uma máquina que nos levante?, se o mundo é o que pisamos e nenhuma necessidade há em reinventar as hierarquias. É apenas uma máquina o que necessito, uma máquina para espreitar o mundo. O mundo não vai mudar por causa disso.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-21

foto&legenda # 213 (alguém aí)

Há ainda aquilo que mais somos incapazes de pronunciar, um modo entranhado de entranhas a pulsar, a dança dos olhares sem coreografia exacta, a aproximação pelos toques, pelos corpos. Agora imagine-se isto dissolvido na paisagem urbana, incêndio invisível, inscrito nas vitrines. Apenas para que o que é legível permaneça indizível e todos saibam.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-20

foto&legenda # 212 (city of blinding lights)

As luzes da maçã grande escondem arquitecturas prediais, são translúcidas, iluminam e cegam, revelam.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-18

embora não fosse necessária a sua exposição imediata, a fotografia do Paulo e as fotografias do Nuno, estampadas abaixo, não mereciam esperar. há, no entanto, o prejuízo inerente à pressa. a oração esboçada para o rodapé de cada fotografia padece de injustiça. mas antes isso do que a sua, das fotografias do Paulo e do Nuno, invisibilidade ou demora. se sofremos a urgência, também a podemos exercer.

foto&legenda # 211 (dilúvio comum)

Bem sei. Precipitação, não é? Esta não é a oportunidade para lavar os pés. O lustro, que não é, enganou-me. Engano-me tanto. Vou ficar aqui a olhar apenas, a contemplar. Sei lá que mais. Apetece-me natureza, não me apetecem termas. E o dilúvio?, o dilúvio já foi há tanto tempo. Agora só acontecem réplicas. Estamos na era das coisas comuns, das coisas que se repetem.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 210 (postigo de ver ao mundo)

Que foi muito o que vi passar diante de ti, tardes espraiadas gastas a olhar o pátio, os pequenos pássaros a tomar o grão no bico, o vento a agitar a folhagem, o sol a secar as vagens. Quantas horas foste cúmplice de mim e, por vigia, me mostraste o mundo. Quantas horas me guardaste do frio e da chuva. Quantas vezes, tantas, foste o espelho que procurei, para me saber em casa. O que digo agora já é pouco, sabes? Ficarás por mim, porque eu vou-me embora. Não voltarei. Deixo-te aberta, que é como melhor te recordo.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 209 (limiar)

Não, não é o cansaço que me detém aqui. É a preguiça e também a imaginação de uma dúvida. Além, aquela divisão após a porta, é o pressuposto ou a consequência da luz? Qualquer que seja a resposta, enquanto o sol não for amortecido na noite, guardar-me-ei nesta sombra. Espreitarei além quando existir lua altiva, não antes. O ouro astral faz-me indolente e sem radar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 208 (alados, iii)

Não me é difícil crer em anjos, que voam e manobras assim. Cresci a acreditar no Super-Homem e na kryptonite, página a página. A minha imaginação está treinada para esse tipo de estranhezas.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

foto&legenda # 207 (alados, ii)

I can fly
But I want his wings
*
É majestade, mas falta-lhe ser falcão para ser mais, voar até patamares superiores, saturno, o sol ou mais além.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

* versos da canção «Gabriel», dos Lamb, incluída no álbum What Sound (Koch Records, 2001).

2006-11-16

foto&legenda # hors-série (limite)

Prenunciava a forma de uma invisibilidade. Havia subtilezas. Havia um modo de habitar-se, conjugado com a necessidade de confirmar o corpo. E havia o sintomático desperdício das lágrimas, como se fosse uma espécie de higiene da culpa. O que exibia, enquanto risco, era a firme e exacta tradução da sua realidade. Era o seu fim também, o avesso do seu simulacro.
fotografia © Janosch Simon
legenda © Sérgio Faria

2006-11-15

foto&legenda # hors-série (mesmidade e encontro)

Havemos de encontrar diferenças no que é o mesmo, não porque o mesmo seja diferente, mas porque o mesmo é o que não encontramos. E havemos sempre. Não porque seja sempre assim, mas porque às vezes fechamos os olhos.
fotografia © *
legenda © Sérgio Faria
* acima vê-se Carole Bouquet. a sua pessoa foi filtrada pelos olhos e suspensa por um movimento de dedo de alguém. não obstante os esforços envidados, não consegui identificar quem é esse alguém, pelo que é com angústia que confesso a incapacidade para identificar o autor da fotografia.

2006-11-13

foto&legenda # 206 (cartograma)

Também na palma da tua mão há itinerários principais e complementares e, por isso, para ela, se justifica um mapa. Não para que quem queira se orientar melhor aí, mas para que, indo por esse enredo, seja possível a alguém perder-se mais facilmente.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-11

foto&legenda # 205 (os [n]ossos)

evoé! à Catarina e ao Pedro, no exílio londrino,
e ao André e ao Paulo, em excursão a New York
Há nossos que foram e estão lá longe. Até onde as mãos não alcançam, alcança a saudade e a memória de quando eram próximos. Um dia tornarão. É esta certeza que ainda já os vai aproximando daqui.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-09

foto&legenda # 204 (tudo o que esta face mostra)

Anda as suas orações, que são as minhas e as vossas orações também. Anda entre o mundo e os mundos, levando-as consigo. Não sabe outro modo de se ser e de me e de vos ser leal. É pureza e mais ainda é com o que leva consigo, com o que partilha, que é meu e vosso também. Eu, isso, não sou, não consigo ser. Falta-me a justiça, faltam-me quilates disso. A vós não sei.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-08

foto&legenda # 203 (cínico com cê de cão)


A verdade é que abrimos a boca mais vezes do que aquelas que são necessárias. Um cão não. Um cão é preciso. Ladra o que tem a ladrar, nem menos nem mais. O instinto é a chave da sua precisão. Mas nós, envolvidos com deuses e com filosofias, não somos como um cão. Já não somos como um cão. Pelo que, à medida que nos afastamos desse referencial cínico, deixamos de ser capazes de lidar com a simplicidade das coisas, começamos a inventar e a complicar, renunciamos, enfim, à natureza. Um cão não, é sempre económico e exacto. Ladra o que tem a ladrar, nem menos nem mais.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-07

foto&legenda # 202 (geografia da ausência)

Os ausentes e os convocados, primeiro. Os esquivos, depois. E uma presença, que não se vê, a dizer os lugares vazios são ainda uma modalidade de habitação. Um têdois ou um têtrês.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2006-11-06

foto&legenda # 201 (se almardente)

Nada (par)a fazer. Excepto incensar a quietude com nicotina, preenchê-la com demora e contemplação, com o tempo de um cigarro, e, ao mesmo tempo, viver o fio de vida que traz.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-02

foto&legenda # 200

" Se a chuva cai e o sol não sai
Penso em você
Vontade de viver mais
Em paz com o mundo e comigo." *

Peito feito sob cabeça erguida,
Maneira de estar
Sorriso sincero com brilho no olho,
Modo de ser
Risco na face, emblema no coração,
Farda assumida e sentida
Costas largas e seguras,
Orgulho e vaidade.

Quanto maior a embarcação,
Mais firme a âncora.

* Excerto de poema de Chico César

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Mário Abreu

foto&legenda # 199

A mesma água é para o cereal e para a mó. A mesma água é também para a farinha. A mesma água consagra-se no pão e em quem a sede é saciada. A mesma água é o levantamento da luz, a força. A mesma água é com o que lavamos o corpo e fazemos o batismo. A mesma água corre onde habitamos, entre paredes. A mesma água que, origem, é de onde viemos.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2006-11-01

foto&legenda # 198 (caminhos, ii)

O cavalo de ferro avança. Poucaterra, poucaterra. Avança pelo caminho certo e traçado também a ferro. Poucaterra, poucaterra. Ferro sobre ferro, o cavalo de ferro é uma máquina. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro adianta-se marcado por uma tabela. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro corre pelo corredor, ultrapassando estações e apeadeiros. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro, demónio em movimento infrene, sopra a velocidade, ao mesmo tempo que amassa a terra. Poucaterra, poucaterra. O cavalo de ferro tem um fôlego eléctrico. Poucaterra, poucaterra, poucaterra... Depois, o cavalo de ferro, máquina, já passou.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria