2010-11-19

foto&legenda # 475 (aparição)

Está frio. Parece que os americanos vêm aí.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-11-18

foto&legenda # 474 (quatro por cinco)

De quatro não estão mais uns do que outros. Há apenas alguns que não querem saber e sentem-se mais de pé. Mais do que por ilusão, por necessidade. Que é para sentirem a anestesia que acompanha a queda. Já estão a cair, continuam, falta apenas a prova de contacto para dispensar a euforia e soltar a sensação da elevação perdida. Então perceber-se-á melhor a precipitação. Foi para o chão, os ossos assinalarão o impacto. Fora de jogo?, não há. A vida não é uma fábula em que há disso ou relvado para amortecer o choque. Pode fingir-se, cantar-se por cinco quinas, permitir o contentamento por conta de um quatro indefinido como se fosse um póquer de ases, havendo ainda um ás na manga, de reserva, que não foi necessário usar. Quatro, está bem. É o estilo que combina a quarta classe com a quinta dimensão, não dói. O royal flush vem já a seguir. É a esperança de quem não sabe interpretar a mecânica da combinação da taxa de juro com o spread. Fodidos, ó ié, mas por cima. Excepto das condições e das circunstâncias que chegaram há muito tempo, que não esperaram pelo prémio prometido. Mas quatro, não esquecer, quatro. Um sinal. À cautela, amanhã marcar também o número e a estrela no boletim, acrescentar uma aposta, se for necessário. Se deus quiser.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-11-05

foto&legenda # 472 (transumância, a volta)

Apesar de tudo é a portugal que voltamos, para ouvirmos as magistraturas da pátria e pastarmos nas pedras. Estamos no caminho bom, só falta começarmos a rir da morte para nos levarem a sério. Somos flâneurs, alguém esqueceu o cão lá atrás. Habitualmente não fazemos fila junto ao balcão, passamos em regime passing by, não tiramos senha. Uma de nós tem a mania que é do benfica ou da vanguarda, não sabemos do quê ao certo, só conhecemos o sinal. Voltamos para irmos brincar para a praia. Talvez um dia consigamos ver os tubarões sem termos que molhar as patas ou a lã. Os tubarões existem, não é?

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-11-04

foto&legenda # 471 (transumância, a ida)

Conduzir rebanhos para e desde os pastos é manobra que remonta a tempo anterior ao das cidades. Depois as cidades vieram e foram colocadas entre os rebanhos e os pastos. As mulheres e os homens vieram habitar as pedras trazidas para fazer as cidades, trouxeram os deuses, as ilusões e os fantasmas consigo, deram-lhes arrumações novas. Foram escritos poemas, salmos e manifestos, escritas canções. As cidades tornaram-se locais de passagem, lugares de sonho. Não é por acaso que os rebanhos continuam a passar, a ser levados para os pastos. Mas já não há éclogas ou idílios, há só atrasos.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-10-01

foto&legenda # 470 (ora ponha aqui o seu pezinho)

Sei que dizes bom dia à tristeza em inglês técnico de animal feroz - não dizes bonjour, pá, porque é pouco elegante e não condiz com a tua gravata cor de salmão, cherne era o outro -, sobre ti não sei muito mais e, sinceramente, não quero saber. Distância, o que quero é distância. Não sou barítono, não estou para tangos ou para tangas. Bem vistas as coisas, a trezentos e sessenta graus como o concerto dos U2 - é já sábado e o preço do bilhete inclui iva à taxa antiga -, eu talvez devesse abalar para fora, ir a salto. Seria bom para ti - menos um -, seria bom para mim - menos dois. Explico porquê. Eu digo eu amo você e tu não respondes bou contar até três. É isso que me faz sofrer, as tuas sístoles e as percentagens que se precipitam da prensa cardíaca que tens no peito sem o um dois três prévio, da prevenção e da protecção civil. Dizes que é assim, em ritmo e com taxa de urgência, por causa da fazenda. Não sei. Isso quase já não se usa, é como os suspensórios e o laço em forma lepidóptera ao pescoço. E que é assim também por causa dos mercados. Também não sei. Aqui as quintas-feiras já não são o que foram, igual só a qualidade da contrafacção. Olha a poça, pá.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-09-27

foto&legenda # 469 (à grande vitesse)

A solução para o mundo continua a ser a do século xix, dizem, não a do espectro que paira sobre a senhora chamada Europa - que foi levada por um boi -, a da ferrovia. Via única e sem obstáculos prováveis. À, vrum, grande vitesse. Destino?, fora, sentido oposto ao do atlântico, para as cidades muito grandes onde se fala estrangeiro. Apesar das autoestradas, aqui estamos ainda na idade a pedal. Estamos a pedalar contra o atraso, precisamos de pedalar, a demora é crescente e já larga. O melhor talvez seja tirar um bilhete de comboio. O mundo muda em surtos temporais cada vez menores, uma quinzena, uma semana, não tardará que aconteça a ritmo diário ou à velocidade de uma viagem de intercidades. Exemplo. Entra-se em caxarias, sai-se em santa apolónia ou vice-versa e, tcharan, o mundo transforma-se outra vez dentro do mesmo fuso horário. O problema é que, seja em sentido descendente - na ida -, seja em sentido ascendente - na volta -, não há muitos horários para escolher. Na linha do tua é pior, só de camioneta. Mas o que interessa isto?, não é? O que interessa é o futuro. Não interessa se andamos a trabalhar para um mundo que nos renegará, com epistemologia acelerada e paisagem dromológica. A experiência que há-de vir é a da dissolução, o mundo haverá de chegar ao limite de não ser mais do que dissolução, sempre e só a acabar, em ruínas e vias de extinção permanentemente. Viveremos com a mesma excitação de agora mas encostados à excitação das coisas, numa sobreexcitação. A revolução que perdeu o prazo de validade que nunca teve acrescentar-se-á indefinidamente na promessa, como já sucede. Acontecerá a arrumação contra capitalista. A américa deixará de ser a américa e no entanto continuará a haver americanos. A culpa tem que ter alguma morada, este é um imperativo analógico inultrapassável, mesmo na era da vertigem. Entendes?, pois entendes. Neste momento não temos tempo para procurar volumes no céu e descobrir o horizonte. Será o que será. Até os pedais nos falham. Agora não caminhamos, corremos. Com o capacete não dá muito jeito mas são as regras, para evitar contusões na cabeça, não queremos problemas com a inspecção aqui ou no estaleiro. Segurança e higiene no trabalho. Sabes como é, de algum lado há-de cair o futuro e em algum lado há-de despejar-se a dívida nacional e o défice público. Portanto previdência, como a caixa para onde, por ano, todos os meses e mais dois vão onze por cento do nosso suor. Só no desemprego é que não. A minha proposta?, é melhor do que a do engenheiro, verter bourbon para dentro das nossas sombras para que, do mesmo modo que as estacas suportam as obras públicas, as scuts e as derrapagens de custo delas, possamos assentar em algo que possa simultaneamente aquecer-nos e sustentar-nos. Vem aí o frio. Sejamos ousados. A produtividade, a competitividade, a ilusão, algo assim, nada que implique despesa ou aumento do endividamento. Ou, mais arriscado e provavelmente ainda económico, façamos como o filho do carpinteiro ensinou, oremos. E, devagar, um orçamento do estado para cada ano, mesmo que atrasado.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-09-23

foto&legenda # 468 (que a freguesa deu ao rol)

Se estamos a falar de autenticidade, e estamos, convém esquecer a canção que é antiga e não é para aqui chamada. Esquece também a minha doença, é minha e já só tu acreditas, desculpa, é mesmo assim. Supõe que está tudo parado, que gestos de ofício, alguns bruscos, foram estancados subitamente mas o sangue ainda está neles, numa pulsação quase travada, de animal hibernado. Imagina que à volta a vida continua, apenas a cor de ferrugem consuma a quietude. Eu fico encostada à vida de ontem, ao calor que define o corpo. Não consegues imaginar, insistes nas rezas para expiar o mal, vencer o bicho, crês que isso irá fazer-me presente eternamente. És fraco, depois da tua mãe fui eu quem lavou sempre as tuas camisas. Quando cheiras a lavado, é a mim, pelo meu trabalho, à água esfregada e ao sabão que deves o cheiro. Tudo detido, sem centro, consegues imaginar?, tenta. Um dia não estarei cá, vivê-lo-ás sozinho e não serás como Pigmalião, não verás vultos em que possas admitir vida ou sobre os quais possas projectar paixão. Um cadáver não é uma estátua. Se chorares, chorarás um fantasma que já não está e não quer estar aqui. Espero sinceramente que continues a ter camisas lavadas, passadas a ferro. Sinto que estou a enferrujar, a secar como barro, não sei que outro nome dar à morte ou à imitação dela antes dela. Talvez vida. Não sei, não sei.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-08-21

foto&legenda # 463 (querer)

Quero crer que não queremos o mesmo. Não quero a urgência, não quero a repetição, também não quero a elevação e não quero a elevação não porque tenha vertigens, porque eu não as tenho. A mim bastam as intermitências da felicidade, aqueles momentos dos pés. A alegria descobre-se nos pés, é o que entendo. Como é óbvio, não dura para sempre, nada é eterno. Até a eternidade há-de acabar um dia.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-08-05

foto&legenda # 467 (ilusio)

Estás no jogo, queres ganhar, não queres perder, estás disposto a tudo para não perder, perder é a confirmação e um atestado da tua fraqueza, isso não te satisfaz, como é que pode satisfazer alguém?, não é?, por causa disso, para não perderes, estás disposto a tudo excepto a abandonar ou denunciar o jogo, porque mesmo derrotado continuas a ser alguém através do jogo, das regras a que obedeces, das posições que podes ter, da esperança que o jogo te propõe, mesmo que esperança desesperada, porque sem jogo ou fora do jogo seria pior, seguramente muito pior, embora não sejas capaz de conceber, imaginar ou admitir o que é isso, sem jogo ou fora de jogo, talvez outro jogo, porque o jogo encerra-te nele e tu encerras-te em ti, no medo da liberdade, no temor da ousadia de saíres do jogo, sem desistires, o modo como os outros te chamam para jogares. Já estás vencido e não percebes, é tudo política, ditadura, não dói.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-07-13

foto&legenda # 464 (carregar)

A gravidade assenta, o chão suporta, uma mão ampara, a fé carrega, a física da trancendência não é apenas a vontade de arrojo. A fé não move montanhas - as montanhas são coisa pouco móvel -, a fé move através da força que consegue projectar, projectar também sobre o que a suporta, porém não move montanhas. E a acompanhar a mobilidade animal suscitada pela fé, a peregrinação, há a mecânica do terço, uma mecânica simples, cinco mistérios, uma avé maria por cada conta, um pai nosso antes de cada série de dez, uma jaculatória - a glória - após a dezena e uma salvé rainha, maria é sua majestade, para rematar a ronda dos mistérios. Tudo isto cabe numa mão e, contas bem feitas, acrescenta na tara, pesa mais.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-07-02

foto&legenda # 466 (morrer na praia)

Este é o lugar da minha morte, tu sabes, eu sei. Não hão-de escrever poemas sobre isto, o que me parece a solução melhor. Um morto não tem vontade, faz como entenderes. Ou não faças, eu prefiro que não faças, que não faças agora e não faças depois. Peço-te apenas que cuides dos meus gatos, ganhei-lhes afeição, sabes?, coisas da natureza, da crueza da vida. Quanto ao resto. Para ser sincero, julgo que não há resto ou, se há, não quero saber. Basta-me estar aqui. Não, não tenho intenção de despedir-me ou de ordenar a lavragem de testamento, não tenho qualquer interesse em contribuir para a resolução dos conflitos entre vós. Fazê-lo para quê?, sois vós que continuareis vivos, o futuro é encargo vosso. Não te agrada, não é?, compreendo. Podes sempre ir fazer queixa ao sindicato. Dá-me cá um abalo ao pífaro.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-05-28

Dit-elle...

«É bom este tempo de anoitecer tarde!...»

2010-04-13

foto&legenda # 462 (l’anatra all’arancia)

Uma personagem secundária, chefinho, chefinho, tão novinho, ainda com o cabelinho todo e tudo, e agora?, como é que é?, como é que vai ser? O protagonista, ora, vai ser como nunca foi antes. Esta é de fazer suar as estopinhas e eu sei muito bem o que isso é porque sou barítono. Portanto, meu bom amigo e amigo da paz, do pão, do povo e da liberdade, é como tem de e que ser. Há-de e há que começar pelos fundamentos, pelo princípio. E o princípio é o que é necessário. E perguntas tu, meu bom amigo, com ar de babalu, porquê rever a constituição?, se. Deixa-te de ses porque os ses só servem para complicar e porque para pensar estou cá eu e o coro de especialistas e poetas que me acompanha. Deve começar-se por rever a constituição porque, estás a ver?, rever a constituição é a forma de fingir que se está empenhado em mudar muito sem, de facto, fazer muito para mudar o que quer que seja. Para além disto, importa notar, (está calor aqui, um calor de ananazes, é um indício meteorológico do que já está a mudar), tal como preconizo, neste princípio há uma economia de procedimentos e uma prática de entretenimento. Aliás a paródia é o que vem a seguir à paz, ao pão, ao povo e à liberdade. Mais ao fundo, fora do alcance da melena do protagonista, uma mulher gritava, ó Geppetto, pá, tu faz-me um filho assim, bom actor e com cara de pau. Parecia ópera mas não era. Não havia pato no assador. E, mais grave, as laranjas não eram só do pafarrão. A história repete-se ou há-de repetir-se.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-04-02

foto&legenda # 461 (disse ela)

Na verdade, não há homens bons, não há homens melhores, disse ela, com a razão toda, até porque não há razão por meio ou por terço ou por quarto ou por outra fracção qualquer. Mas a questão não é a razão, tão pouco é a verdade, é a canção. Todas as canções são mentirosas, do bandido, daí a necessidade de as ensaiar, para o engano ser como nenhum homem é ou pode ser, melhor. O mesmo em relação às mulheres. E àquela coisa - exactamente, coisa - chamada comissão disciplinar da lpfp, éfepê de filhos da puta.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-03-23

foto&legenda # 460 (Tiger Woods não sabe nadar, iô)

Está on?, está a gravar?, então, com licença. Naquela história fomos todos diferentes, o mundo outra vez mas organizado de modo diverso, abaixo dos nenúfares, ainda assim tão perfeito quanto este, onde o mais estranho foi continuarem a ser necessárias as pernas para jogar golfe. Compreende-se que os tacos fossem flamingos e que as bolas fossem ouriços. Lá não havia a liga protectora dos animais, embora houvesse uma menina capaz de aumentar e diminuir de tamanho num instante e de falar com uma lagarta azul a fumar narguilé em cima de um cogumelo. Ouvi dizer que os cogumelos fazem bem à saúde. Mais ou menos, se os animais falam, como a Lúcia no céu com diamantes a ver uma senhora cintilante, como um sol, a dançar sobre uma azinheira. Esta é outra história e, como naquela, nela não se fala de bolotas. Mas podia. Consta que o Abóbora bebia muito. Talvez ele fosse dado a epifanias como a filha. A seco é que seria diferente, birdie, eagle, albatross, condor, consoante o número de tacadas abaixo do par.
fotografia © Elena Kalis
legenda © Sérgio Faria

2010-03-11

foto&legenda # 456 (a justiça pelos passos)

Isto não é uma história à beira-mar. Morreremos todos antes de chegar lá. Já ninguém espera que a justiça, qualquer que seja a justiça - portanto também a justiça divina -, já ninguém espera que a justiça seja proporcional. A vida é necessariamente um exagero, viver é um modo de exagerar. Todos os dias são a perfect day for bananafish. Passo sobre passo, passos largos, andar, andar, recuperar o poder dos passos perdidos. Nesta medida, que justiça poderia conter-nos?, que juízo poderia ser justo connosco?, se o juízo inicial é demasiado antes, se o juízo final é demasiado depois, se há sempre um passo mais a dar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-03-01

foto&legenda # 459 (havia um pentagrama no altar)

Não, pá, não tens razão, não foi um, foram três. Um, dois, três, ora estica lá os dedinhos. À alemã começa-se a contar no polegar. E depois, como se o resultado do jogo não tivesse sido suficiente mau e evidente, naquele jeitinho dele, meio benfiquista meio Deolinda - as proporções podem não ser exactamente estas -, o mister Jesualdo veio dizer ainda somos campeões. Pois são. Mas o objectivo não é deixarem de ser, ficarem a ver o penta por um canudo, que era como já o andavam a ver há muito tempo. A missão não era levarem três secos de uma equipa orientada por uma tarântula de pinhal manso e permitir que uns tamboris dos arrabaldes da alameda das linhas de torres e que vão a massagens a Alcochete fizessem fosquetas junto à linha lateral como os símios expostos no jardim zoológico. Combate é combate, é sempre a subir. Aos outros, os tarantantans listrados em latitude, é que devia ter sido concedida a sorte da derrota. Mas, com um híbrido meio benfiquista meio Deolinda com o cérebro desenhado para conceber tácticas de curling usando como base os considerandos de Schröndinger sobre um tareco qualquer, fazer o quê? Perdemos bem, também disse ele. Uma manada de Gauríns arrumada para dançar ballet pode dar para perder, porém perder assim nunca é bem e sobretudo não é bonito, menos ainda contra onze gnomos que andaram para aí não sei quantas semanas a espraiar futebol de pacote e a levar para contar. Outrora no hectare servia-se tango, não espetadinhas de frango.
fotografias © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-02-27

Nota de intendência. Há muitas fotografias no Paulo sobre o que aconteceu na Madeira na Tabu, revista que suplementa o semanário Sol (n.º 182, 26.fevereiro.2010). Folhear em particular as reportagens entre as páginas 22 e 25 e as páginas 26 e 39. E ver.

foto&legenda # 458 (jardim suspenso)

A natureza é o absoluto que nos antecede, absoluto pelo qual somos necessariamente, somos no equilíbrio entre o que somos e as provas de contacto do que somos. Portanto somos sem saída. Quando da natureza vem muito mais do que as mãos, o que elas fazem e os frutos, quando vem a força que desabita e desola o chão, contam-se os mortos e recorda-se uma dúvida que o tempo foi fazendo esquecida: porquê o mundo é feito de destroços? Continuamos a não saber a resposta. O que sabemos é que quanto mais força é investida contra a natureza maior é o impacto que ela é capaz de devolver-nos em formas e modos que nunca conseguimos domesticar. Somos fracos, não somos sempre fracos, mas somos fracos. A natureza fez-nos assim, com inclinação à fraqueza diante dela. À semelhança do que sucede no combate entre os deuses e os mortais, no combate travado entre a natureza e os mortais são os mortais que morrem. Se há sobreviventes, não é o fim. Reerguer é o verbo que acorda com o luto e através do qual as pessoas são capazes de continuar, é o acto após o estupor que sucede à tragédia. Vêm as máquinas, vêm as mulheres e os homens. Permanece o contrato entre a natureza e a humanidade, contrato em que a cláusula da morte não está escrita em letra miudinha. Vêm as mulheres e os homens porque a remoção dos destroços não é ofício dos deuses.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2010-02-19

foto&legenda # 457 (rexistência)

Somos breves e pequenos para o desespero que não assumimos. Confins, corpo a corpo, merecemos o que, por devolução nossa ou da natureza, nos acontece ditado como culpa e sentença. Não tapes os olhos, descobre-te. Estás a acontecer. O mundo já está nu.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-02-09

foto&legenda # 455 ((antichrist television blues))

Não sou original, repito com adulteração um credo de Nietzsche - Ich würde nur an einen Gott glauben, der zu tanzen verstünde -, não creio em deuses que não saibam dançar. Menos creio em deuses mortos que isso também, cadáveres não dançam. Este princípio remete-me ao corpo, ao posto onde a morte sopra como instinto. Antes das ficções, a sobrevivência, o combate, o jogo, os passos, a alegria, o erro. Talvez não seja verdade mas, meio mas, não mais do que essa porção adversativa, preciso de estar sozinho para encontrar-me. Quando saio estou com os outros, partilho a respiração com eles. É isso a dança, admitirmos a água como vinho, o vinho como sangue, o movimento que transforma o pão em mais pão e o pão em carne, para que a festa não cesse. Não preciso de histórias da carochinha para acreditar no corpo, no que com o corpo se faz e é possível fazer, incluindo a ligação. Preciso de simplicidade, de estabelecimentos que consiga ver, necessito da concretude dos dias que acontecem mais perto, dos desvios que posso através deles e das horas que têm. Sem assentar em doutrina, creio no corpo a autenticidade, no corpo a história, no corpo o reino, no corpo o rei, eu, tu ou outro, a falência da intenção metafísica. É assim, se danças, trazes a música à carne, numa operação em que o corpo vibra a ressurreição da condição própria. Preciso de estar sozinho para encontrar-me mas, agora a adversativa é inteira, concedo, descubro-me corpo a corpo, descubro-te também. A dança despe-nos. Ficamos sem deuses, ficamos sem teelvisão, matamos e prescindimos de o que é supérfluo. O corpo é suficiente, sede e ligação. E quem diz dança diz futebol.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2010-01-20

foto&legenda # 454 (esquina americana)

O Haiti é tão longe e falam francês lá, chorar o quê? Claro que a culpa é dos americanos, de quem haveria de ser? É sobretudo de Whitman, dele antes de qualquer outro, que morreu naquela aflição original de ser americano antes de os americanos serem quem são, que sofreu e soube louvar a culpa de ser assim desde o princípio. Mas, ainda o Haiti, eu não estou lá, não tenho amores ou contas de sangue ou simpatia lá, aquilo não é comigo, porquê fazer aquela tragédia comum?, vala de todos, inclusive minha. A mim basta-me a estranheza próxima, a esquina americana que foi inaugurada a semana passada na cidade que nunca saiu do estupor de ser vila, excepto na cobrança do parqueamento automóvel. Passei lá ontem ou anteontem, àquela esquina, e vi o corredor intrépido, como espectador diante de um ecrã, a olhar as voltas do tambor de uma máquina de secar roupa. Castigo divino, disse uma mulher que se aproximava da porta da lavandaria self-service, foi castigo divino. Coitada, ela não deve saber que os americanos existem. Admiti que ela tivesse os pés cansados, o calçado parecia desconfortável, e pensei na teoria da massagem aos pés contada em Pulp Fiction. Eu passei ali só para ir comprar o jornal e beber um café e, sem querer, tornei-me uma testemunha inoportuna. O número de mortos no Haiti contado em pés há-de ser mais aterrador, dobra a desgraça, faz julgar que os sobreviventes são menos. Andar, andar, shake dog shake. Larkin chamou à vida a quite unlosable game - escreveu-o num poema -, ainda que não à vida toda ou inteira. E eu, que tenho dificuldade em apontar o Haiti no mapa, sei que o mapa se chama planisfério mas não sei onde fica o Haiti, estou a conjecturar o que aquilo, aquilo das notícias, que vem nas notícias mas que é de lá, do Haiti, o que aquilo possa ter a ver comigo, com a mulher do deus punidor, com o Fabrício a olhar para a roupa a passar enrolada atrás do óculo de uma máquina de secar, com o senhor Manuel Cartuxo à porta da loja dele, com o senhor Joaquim sapateiro a trabalhar dentro da oficina no lado oposto à mercearia do senhor Manuel Cartuxo. Os pés, o que terão os pés dos haitianos a ver connosco? É verdade, na esquina americana, dentro da lavandaria, costuma estar um rapaz que fala com sotaque. Aposto que esteve em França e que aquilo, pôr um bocadinho da américa ali na praça, de onde se vê a igreja, o café central, tudo mais concreto do que o Haiti, é o negócio dele. Claro que a culpa é dos americanos, a mulher nada sabe sobre o assunto. Carregava um cesto com roupa, para lavar ou secar, não sei. O deus que castigou os haitianos não tem tempo para tratar da roupa da mulher. Agora nem as orações nem os voodus lhes valem. Embora não saiba da culpa dos americanos, a mulher é capaz de ter razão. Dificilmente as orações chegarão ao Haiti a tempo de salvar alguém. Andar, andar, é para isso que servem os pés. Porém o Haiti é tão lá longe e eu passei naquela esquina só para ir comprar o jornal e beber um café. Na capa do jornal vinha uma fotografia do Haiti.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria