2007-06-29

foto&legenda # 318 (telhado com ciclope)

Veio a alma, que dizem grande - maior do que a barriga -, à portagem dos altos. Toc, toc, dás licença?, interpelou a alma a incerto. Ora quem vem lá?, quis, com voz grave, saber o incerto que afinal era certo e há muito regia aquele domínio. Sou eu. Tu?, tu quem? Eu. Pois és tu, exacto, mas tu és quem? Eu. Sim, tu és tu, mas a que graça respondes? À minha, a qual outra haveria de responder? Presumo, então, que sejas o Álvares Pereira. Pois presumes mal. Não és o Álvares Pereira? Não, sou o outro. E o que queres daqui?, ao que vens?, tu. Quero saber, há inferno para mim?
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria

2007-06-27

foto&legenda # 317 (o outro ciclope)

São animais tão estranhos quão garbosos, feras à moda antiga, com olhar rasgado. Desfilam e desfiam o horizonte, a sua frente e as suas laterais, para, depois, sub specie æternitatis, capturarem e suspenderem o seu simulacro em photomaton. Com um olho só, mostram-nos o mundo com mais alcance, como se, pelos retratos que conseguem, o estivessem a construir em pedaços de papel frágil, numa empreitada que já não é de deus e que deus jamais conseguiu.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-06-25

foto&legenda # 316 (além playstation)

username: almeida
password: 11portugal43
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

2007-06-22

foto&legenda # 315 (arqueologia de um sandaleiro)

Haverá quem julgue ser um pormenor e, portanto, que a afirmação seguinte, Jesus não teria sido quem foi sem as suas sandálias, é uma afirmação desproporcionada. Porém, facto é, Jesus não teria sido quem foi sem as suas sandálias. Pelo que, para decifrar a história da cristandade, é necessário fazer a arqueologia do seu sandaleiro. Aí está a causa do princípio a que é necessário regressar. Até porque a memória deve convocar os calçados apenas.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-06-20

foto&legenda # 314 (a demora)

Já são muitos os dias a ver os mesmos rostos, a constatar os mesmos ofícios. Parece que nada mudou ou muda. Apenas os modos e as sensibilidades vão envelhecendo, até à extinção. Depois parece que começa o novo, de novo. Acontecem inaugurações. Porém persistem os mesmos rostos, os mesmos ofícios. E, sob eles, continuam as necessidades. Os mistérios resolvem-se assim, prolongando-se.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-06-18

foto&legenda # 313 (pavilhão dos loucos)

Mais do que o sol, o rei sol, importa a aproximação astral, a faculdade do vôo, pela qual é possível estar acima do que está e voar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2007-06-17

foto&legenda # 312 (a lenda)

Que era um problema de constelação. Que conhecia o homemcidade, que o conhecia bem, muito bem, mesmo, desde há muito tempo. Que era uma coisa de intimidade, delírio urbano, depressão, multidão, solidão. O homemcidade?, claro que conhecia o homemcidade, pois, então. E o homemtigre, essa fera das cidades a crescer, das cidades com feira, também. Como?, ora, conhecia conhecendo e de conhecer, obviamente.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-06-15

foto&legenda # 311 (porquê Kafka?)

Porquê Kafka?, perguntas. Porque há necessidade de admitir e considerar o inverso, virar as coisas do avesso, metê-las de pernas para o ar, chocar com o contrário. De outro modo seria muito mais difícil continuar.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-06-13

foto&legenda # 310 (alegoria da caverna)

Dizer deste flanco que, com a captura das sombras, tudo começa aqui. Que o que o constitui não é um manto espesso, mas a mortalha onde o fogo transluz. Que é um espelho poroso, sem negativo, que agarra e encerra o movimento na sua moldura de visão. E que, se para além do jogo da umbria, é um écran vazio, inabitado, morto, sem soberania.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-06-11

foto&legenda # 309 (a geometria dos lugares)

A geometria dos lugares começa com a exaltação das margens, ó margens!, ó margens!, e continua onde se julga o que era anterior, o lastro sobre o qual os edifícios foram construídos para a resistência e prometidos à posterioridade.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-06-08

foto&legenda # 308 (esplanada)

Diante ainda demora o tempo que será verão. É uma espécie de momento suspenso, com Sacavém ao lado, e amores pequenos, a crescer. Nenhuma província, portanto, a espera apenas, e o tempo a morrer lentamente, com presença.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-06-06

foto&legenda # 307 (escolta da ausência)

Há dias em que apetece desligar a máquina, abrir a janela do quarto, fingir a natureza do ar condicionado, imaginar a distância do que, embora próximo, sentimos distante. Quando esses dias, a matéria de que somos feitos transforma-se, aproximando-nos da condição de ninguém. E é como ninguém, anónimos, que nos guardamos sob o que não está presente.

fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2007-06-04

foto&legenda # 306 (a senda do avesso)


não estou a pensar, porque não posso pensar.
também não sei as minhas mãos, perdi-lhes
o controlo e o consolo. não é a derrota ainda,
é o seu prenúncio apenas, a sua antecipação.

um dia habituamo-nos a procurar atrás
das coisas e, se têm paradeiro desconhecido,
é aí que as vamos procurar, insistindo
na sua sombra. a habituação à perda
necessita desta manobra. é um acto fácil,
para o desperdício. não é distante do corpo,
não lhe é estranho. aliás, quando aí se habita,
o silêncio transforma-se em lugar, um lugar
estranho como o passado sobre o qual escreveu
l. p. hartley, the past is a foreign country:
they do things differently there
. e depois?,
sim, depois, que fazer?, esta é a pergunta.

regresso. a embriaguez que me embala não é
um barco. também não é inveja. eles são novos,
com o corpo permanentemente acordado. é o seu
primeiro amor, cada dia é seguro, sentem-no.
mas um dia, próximo, habituar-se-ão a procurar
atrás das coisas, a espreitar onde estão as sombras,
as mesmas que já consigo ver.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © serôdio d’o.

2007-06-01

foto&legenda # 305 (identidade)

Preciso de uma certa certeza, quem és tu?, para efeitos de preenchimento deste impresso. Não são admitidas declarações falsas. She’s got an old death kit. Os dados têm que ser precisos. Compete-me velar pela sua autenticidade. She’s been meaning to use blood in her eyes in her eyes for you. A autenticidade e a veracidade acima de tudo. Diz-me, quem és?, o que fazes?, como o fazes?, quando o fazes?, porquê o fazes? Compreendes estas perguntas? São rotina administrativa. She’s got blood in her eyes for you certain fads, stripes and plaids singles ads. Insistes em nada declarar?, porquê?, queres enganar-me?, para tentares enganar também a máquina grande. Se assim é, não posso emitir a certidão requerida. Não sei quem és. Perante o teu silêncio, nada é possível atestar sobre ti. Ver o teu sangue, conhecê-lo, mesmo aqui, neste guichet, não é suficiente para provar a tua existência. Podes ser outra pessoa qualquer. Até podes não existir. E, por imperativo de serviço, eu tenho que ser rigoroso. *
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

* a legenda é interceptada por versos da canção «Fake Palindromes», composta por Andrew Bird e incluída no álbum Andrew Bird & the Mysterious Production of Eggs (Righteous Babe Records, 2005).