2013-11-27

foto&legenda # 519 (a caravana não passará)

Quem sabe o que é o amor sabe que o amor não existe a não ser nas drogas duras e nos versos de Morrissey, and if a double-decker bus
crashes into us
to die by your side
such a heavenly way to die
and if a ten-ton truck
kills the both of us
to die by your side
well, the pleasure and the privilege is mine
.* Este é o multiverso do nosso encontro, o chão e o sangue comuns. Nele uso o meu melhor coração, o de sexta ou sábado à noite. Visto as revelações que posso, tesouro os xaropes que a frequência modulada promove. Sinto a febre, algo impede o off. Como o outro numa canção diferente, sou assaltado pelo frémito de enforcar o dj. Segurem-me. Estou inocente, não sou, lavo as mãos. O que, neste momento, já não é suficiente.
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* versos da canção “There is a light that never goes out”, da banda The Smiths, incluída no álbum The Queen Is Dead (Rough Trade, 1986).

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-11-06

foto&legenda # 520 (frente de combate)

Exercito os meus demónios com devoção, menos do que com ternura. Quero que os records menores se fodam. Conheço Queequeg e não julgo que ele fosse mais homem ou herói por riscar com a mão uma parede de água que falece no estertor que enrola e anuncia. Recuso o testemunho, é-me indiferente o tamanho das ondas geradas pelo canhão da nazaré. Grande é grande. O que me preocupa?, o apocalipse zombie e, antes, as notícias que poderão chegar logo de um lugar que já não se chama ленинград, na margem do neva.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-10-13

foto&legenda # hors-série (to commute)



Ontem o tio Howe tocou em torres novas para a Leonor. Algumas canções, um boné, dois amores.


versão original da canção (in Giant Giant Sand, Tucson: A Country Rock Opera, Fire Records, 2012).
versão revista da canção (in Howe Gelb, Dust Bowl, 2013).

2013-09-16

foto&legenda # 518 (signo urbano)

O signo de uma cidade é ser cidade, rodar sobre si sem horas, na largura e na diferença. O signo de uma cidade pequena é ser pequena. Ninguém tem de ser do tamanho do lugar e do tempo que ocupa.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-09-06

foto&legenda # 517 (défices)

Uma pessoa é todas as pessoas, o que a distingue e a aproxima dos outros, todos os outros. Não ter facebook liberta.

fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-08-07

foto&legenda # 509 (lá num país cheio de cor)

No que ainda têm de nosso, os dias dão para quase tudo. Podemos discutir raças de cães ou de zombies, contar anedotas, cheirar frutos, o perfume solto pelo calor, conversar sobre os últimos episódios de boardwalk empire ou de game of thrones. Deixa os amores para lá, a estação está turva. Para que há défice e défice do défice? Agora é hora de construir uma jangada, descer o rio, deixar os poetas, os que escrevem em excel e os outros, irem ao fundo, todos. Todos, mesmo que todos não sejam todos, mesmo que todos sejam menos do que metade, bastante menos do que metade, todos. Lembro-me todos os dias de Jack Bauer, a falta que ele me faz, dos versos
and everybody knows that you live forever 
ah when you’ve done a line or two. Lembro-me do tempo em que as linhas pareciam linhas de comboio, traços brancos, riscos imperfeitos, e uma espécie de locomotiva os fazia desaparecer. A máquina galgava, trazendo certezas, conquistas, a primeira aspiração natural. O casino perdia, os bichos ganhavam. A vertigem não acontecia,  o sistema repetia-se, funcionava. Olha, pegadas no tecto, pá. Os da raça do Astérix temem o mesmo.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-07-30

foto&legenda # 516 (in(di)visível)


Vê-se o que se pode ver. Quanta mais culpa, mais é o que já foi visto.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-06-25

foto&legenda # 507 (os herdeiros do senhor visconde)

É como o sabor autêntico da coca-cola. Nada a declarar. Eles têm uma estirpe. Se alguém for acossado por dúvidas, consegue tirar a ilação estripando-os.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-05-20

foto&legenda # 512 (ao vigésimo sétimo) (versão a mesma espécie)


If I die this instant 
Taken from the distance 
They will probably list it down 
Among other things round town *

Ver não faz mal. Não é tanto a beleza do desalento do derrotado no momento da derrota, o sublime criado pela prostração, aquele instante, em que, como se tivesse havido intervenção de uma autoridade cósmica, as coisas se consertam na ordem delas, ultrapassando tanto a contingência quanto a improbabilidade que alimentaram desejos, esperanças, sonhos, jactâncias em vão. Há um momento em que a virtude da liberdade cessa, não definitivamente mas na circunstância, em que se atinge o limite no qual as coisas são os que as coisas são, simples, não o que as coisas poderiam ter sido, complicadas. É o momento derradeiro, o da falência e da conformação com a falência. Nada disto merece celebração ou fé, merece apenas que não seja esquecido. A alegria está no outro lado. Mais poderiam estar aí. Os que estão, estão por opção, são suficientes, suficientes também para evitar o esquecimento. Não ser como os outros é o que ainda faz a diferença.
fotografia © ASF / A Bola
legenda © Sérgio Faria
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* versos da canção "Humiliation" (in Trouble Will Find Me, 4AD, 2013), da banda The National.

foto&legenda # 512 (ao vigésimo sétimo) (versão cão)


a André Machado

Ides sofrer como cães, o aviso. Não estava escrito pelo destino que iria ser assim, porém impôs-se que tivesse sido assim. O aviso, com a ressonância literária que tem - ressonância kafkiana, wie ein Hund, não expressão de boçalidade tribal como algumas almas de casca grossa e melindre mui delicado pretendem -, foi exigência do protocolo da magnanimidade. Há quem não ande nisto para enganar-se ou enganar.
fotografia © ASF / A Bola
legenda © Sérgio Faria

2013-04-30

foto&legenda # 511 (campeãs, campeão)

Vencer não é muito diferente de empatar ou perder, é um resultado. Serem campeãs, fazerem do Clube Atlético Ouriense o campeão que também vos fez, é serem defensoras de alguém, de algo, alguém ou algo que protegem pela vitória. Em última instância, protegem um nome, o que levam, o vosso nome nosso que é o nosso nome vosso, o estandarte. Palavras para quê?, se bastava ter dito comunidade, não é? Porque são campeãs, agora outra vez, porque venceram, embora antes já fossem, porque vencer não é simplesmente esperar a vitória.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-04-25

foto&legenda # 508 (o 25)

Pouco?, muito?, nada?, quando desistimos ainda sentimos que temos algo a perder?, quando nos sentamos no chão ainda sentimos a diferença?, quando olhamos ainda percebemos que ocupamos um lugar que não nos estava destinado?, quando. Ainda custa aprender que Salazar não morreu quando morreu.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-04-24

foto&legenda # 510 (la philosophie du non)

A palavra não não tem o respeito que merece.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-04-02

foto&legenda # 506 (mind the gap)

Embora possa não bastar dar passos, para se chegar a algum lado é preciso andar. Não é uma ordem, é a ordem dos lugares e das coisas entre eles. Muitas vezes a ordem funciona por arremesso. Lança-se algo ou alguém e o que ou quem foi lançado vai ocupar o lugar, um lugar, que, quando ocupado, ganha o título de respectivo. Há quem veja neste processo a mão de deus a agir, a consumação do destino. Há quem seja modesto e veja apenas a improbabilidade a acontecer. Sobre isto, as palavras de um dos filósofos contemporâneos maiores, Cruijff, são exactas e definitivas, toeval is logisch. Estamos lá.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-03-05

foto&legenda # 505 (dieta para o caminho)

Diz o meu senhor que o incomoda a tristeza dos outros. Que, se não temos afluência ou aforro que nos permita comer bifes todos os dias, temos que aguentar. Que temos que e que temos de, necessidade e obrigação, peso das coisas e da alma, aguentar como qualquer indigente aguenta. O meu senhor não come bifes todos os dias, come quando e quantos lhe apetece. Se quisesse comê-los todos os dias e mais do que um por refeição, o meu senhor aguentaria a ração. Tudo isto tem uma razão certa, classificada, mas, divago, não sei se tem a razão, entendida como integridade. Talvez falte travejamento à minha ideia. Não sei se não, se sim. Vivo neste desamparo e aguento. Julgo que não ter certezas não é mau e pode até ser mais condizente com os erros e as tentativas de correcção que posso por conta própria. Vivo nesta condição trágica, opção que acrescento à hipótese, entre as alegrias e as tristezas que pago. Olho para os preços e não sou capaz de deixar de admitir que às vezes o barato custa muito a alguém, custo em proveito de quem tanto lucra pelo meio pelo que sai e para que saia caro a quem, que produz, que vende, que compra, tem que e tem de aguentar para que haja quem, classe gourmet, esteja e pretenda continuar isento de aguentar o mesmo, a perda, a fome, a ressaca disso, a melancolia, o desespero, a vontade de cantar estou aqui, filhos da puta, estou aqui, fingindo que não se está onde se está justamente por se estar aí.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

2013-02-27

foto&legenda # 503 (cinética)

Destes dias vem o prazo mais do que dobrado. Quando alguém diz que procura outro começo, o que se ouve é uma intenção de recuperação, conseguir-se outra vez o mesmo. O movimento que se vê, o atraso do movimento que se ainda se consegue ver, combina o tempo - implicatissimum ænigma, segundo Agostinho - no que ele pode ser, præsens de præteritis, præsens de præsentibus, præsens de futuris. Don Quijote?, qualquer um de nós é um pouco e vê coisas que já não se vêem. É uma questão de hábito.
fotografia © Pedro Gonçalves
legenda © Sérgio Faria