2008-02-11

foto&legenda # 399 (telhado com três gatos)


És ainda muito pequeno para perceber certas coisas, dizias. Tinhas razão. Eu não sabia o que queria dizer flambé. Também não sabia o que queria dizer Brigitte Bardot ou Jane Birkin ou respiração ofegante mois non plus. Sequer tinha dúvidas em francês. Não obstante, levavas-me pela mão, para abrir o mundo pelo lado do avesso. Era um amor sem remuneração, eu apenas tinha que, de mão dada a ti, caminhar mais depressa, para acompanhar os teus passos. Quando íamos à retrosaria perguntavas sempre se havia daquelas caixas mais pequenas, que tinham formas estranhas e delicadas e eram coloridas, diferentes das outras que eu já conhecia, de papelão grosso, que, por embalarem electrodomésticos ou outras máquinas, abundavam lá em casa. Eram para mim, as caixas. Deixavam-nos ir lá atrás, passar as cortinas pesadas, subir a escada, escolher. Por tudo isto, do cenário ao cheiro do lugar, havia o meu deslumbramento. Depois, diante do universo das caixas, sorrias e ensinavas-me economia. Só podemos levar uma, de qual gostas mais? E quando dizias isto continuavas a sorrir. Era o mesmo sorriso que fazias quando me levavas ao mercado para testemunhar os cachos de bananas, pendurados no tecto. Nessa altura, sem necessitar de grande concentração, o bulício em torno desaparecia e eu conseguia ouvir os mesmos ruídos que o Tarzan ouvia. Só quando passavas a mão pela minha cabeça, desfazendo a minha auréola, é que voltava o barulho do mercado e abandonávamos aquele lugar fantástico, na senda de outra bancada. Eu só não ia à do peixe. Se durante a volta me furtava à tua guarda, já sabias onde encontrar-me. Lá estava eu, a contemplar os cachos de bananas, a desviar-me dos outros sempre que necessário, para não perder o contacto com aquele elemento exótico por um instante que fosse. Levaria uma semana a poder tornar a olhar fascinado para os cachos de bananas. Isto aconteceu muito antes de eu ter aprendido o que queria dizer depressão e embriaguês e intoxicação. Foi por essa altura que, sem ter visto algum a partir de um plano superior, aprendi que existiam telhados. Lá em cima, no topo das casas, havia telhados. Como serão os telhados?, perguntava-me em pensamentos. Tanto que, para deslindar o mistério, um dia, sem aviso, atrevi-me a subir ao sótão para espreitar os telhados das casas circundantes, mais baixas do que a nossa. Porque os degraus que conduziam ao sótão rangiam, surpreendeste-me, disseste-me para parar e descer. Que não havia nada para ver lá em cima, que os telhados não eram um lugar assim tão mágico. Mas, ao mesmo tempo, o que intensificava a minha curiosidade, dizias que os telhados eram o lugar dos pássaros. E zombies?, há lá zombies? Assim formulada, a pergunta era estranha. Mais ainda porque colocada por alguém cuja maior ousadia era folhear livros de aventuras do intrépito major Alvega. Ouviste mal a história, os zombies não voam. Nunca voaram. De facto, eu era ainda muito pequeno para perceber certas coisas. Mas tu não desistias. E, para me recuperares para a realidade, quando me levavas à rua, apontavas para o manequim quase despido exposto no interior da loja e dizias, olha, conheces?, é a Deolinda. Como sabias, não sei. Às vezes havia reflexos no vidro da montra e eu não conseguia espreitar. Ainda não tinha sido feito o diagnóstico dos meus males de vista, miopia e astigmatismo. Que eram mais coisas que, sendo-me íntimas, eu não sabia o que eram. O tempo passou. Agora, que tenho um olho à cyborg, sei que estão três gatos no telhado a apanhar sol. O nome de um é Ludovico. Todo preto, tem apelido literário, Settembrini.
fotografia © Pedro Figueiredo
legenda © Sérgio Faria

1 comentário:

Anónimo disse...

Esta prosa apesar de fodida, é estranha e interessante. Boa malha.