2010-09-23

foto&legenda # 468 (que a freguesa deu ao rol)

Se estamos a falar de autenticidade, e estamos, convém esquecer a canção que é antiga e não é para aqui chamada. Esquece também a minha doença, é minha e já só tu acreditas, desculpa, é mesmo assim. Supõe que está tudo parado, que gestos de ofício, alguns bruscos, foram estancados subitamente mas o sangue ainda está neles, numa pulsação quase travada, de animal hibernado. Imagina que à volta a vida continua, apenas a cor de ferrugem consuma a quietude. Eu fico encostada à vida de ontem, ao calor que define o corpo. Não consegues imaginar, insistes nas rezas para expiar o mal, vencer o bicho, crês que isso irá fazer-me presente eternamente. És fraco, depois da tua mãe fui eu quem lavou sempre as tuas camisas. Quando cheiras a lavado, é a mim, pelo meu trabalho, à água esfregada e ao sabão que deves o cheiro. Tudo detido, sem centro, consegues imaginar?, tenta. Um dia não estarei cá, vivê-lo-ás sozinho e não serás como Pigmalião, não verás vultos em que possas admitir vida ou sobre os quais possas projectar paixão. Um cadáver não é uma estátua. Se chorares, chorarás um fantasma que já não está e não quer estar aqui. Espero sinceramente que continues a ter camisas lavadas, passadas a ferro. Sinto que estou a enferrujar, a secar como barro, não sei que outro nome dar à morte ou à imitação dela antes dela. Talvez vida. Não sei, não sei.
fotografia © Paulo Vaz Henriques
legenda © Sérgio Faria

2 comentários:

Anónimo disse...

Gosto muito como os textos de Sérgio Faria dão vida às fotografias. Muito bem haja por nos proporcionar este prazer.

Ana

Anónimo disse...

é tão bom ver quem ama ! mas ama mesmo, no sentido do verbo! :)