2006-03-22

foto&legenda # 16

Aqui, postos sob o silêncio, sentem-se dois murmúrios. Um, por que me queres?, ó memória, jogado pelo tiquetaque cardíaco deste lugar. O outro, quero-te para meu corpo, ó cidade, segredado pelas elipses contínuas do tempo. É este diálogo de vozes quase caladas que se repete e cruza com outro sussurro, a erosão lenta do fio tecido por Ariadne. O lugar vai afrouxando em mistério, vai sendo vencida a sua voz. Vão-se gastando e perdendo as palavras do seu nome. Os homens não se compadecem com isso e, por acto, confirmam o abandono da carne que se empresta à casa nossa de todos os dia. Por esse abandono, o lugar morre, sem amadurecer. As paredes falem. Há quem diga que é assim porque tem que ser, é o lugar a crescer, a cidade a sair das entranhas da vila, vila nova, como da crisálida, da ruína da ninfa, nasce a mariposa. Mas os homens mentem. Por isso tentam esconder o cadáver do lugar, embrulhando-o em futuro. Inventam cerimónias e orgulhos, exibem o seu estandarte, desfraldam-no ao vento, cantam hossanas, vésperas e esperanças, empinam o peito e olham o céu, pisam o seu chão, mas não vêem o que está diante de si, as insígnias do lugar a sangrar. A memória, pacho fraco, não estanca tal derrame. Fortuna é, sobre aqueles murmúrios já ditos, sentir-se ainda a sombra de um par de asas, majestosas. Sabe-se que não é um anjo que guarda este lugar, é uma águia. Águia que, sempre, abre as suas asas contra a queda, contra a traição, para, pelo seu bater, acordar as paredes que os homens já crêem e querem sem vida. Aos homens, aos senhores deste lugar, falta-lhes aprender a escrever a saudade nas coisas e guardá-las. É que, como a águia nos ensina pela sua vigilância, quando se voa, não se ressuscita das cinzas ou do nome que se deixou apagar. É assim no céu, é assim também no chão, neste lugar.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

12 comentários:

Sérgio Ribeiro disse...

Quantas vezes aqui passei e, memória indignada, pensei fotografar? E passei. Mas o Nuno, com a sua memória de jovem por isso ainda mais de futuro e projecto, não pensou, fez! Fotografou. Obrigado, muito obrigado, Nuno.
Quanto ao texto... bem, é do sf!
São "as insígnias do lugar a sangrar. A memória, pacho fraco, não estanca tal derrame."
Já ganhei o dia! Venha ele.

Anónimo disse...

A nostalgia melancólica da memória.

SF,
É sempre um prazer ler os seus magnificos textos.

GR

Anónimo disse...

SÉRGIO RIBEIRO
(pedido de esclarecimento)

Então!
O que aconteceu ao anónimo XXI ?
É o segundo dia que não o consigo abrir!
Clico e aparece a página (!) em branco!

Vou fazer uma manifestação de protesto!
Mounti, alguém está a boicotar o (teu) blog !

GR

Sérgio Ribeiro disse...

Pois é, GR, não sei que se passa...
Como calcularás estou ainda mais "bera" que tu.
E (ainda) não sei que fazer. Ajudem os que sabem de informática e blogs.com. Isto é, digam-me, por favor, que hei-de fazer.
É um S.O.S.!

Anónimo disse...

Se calhar foi por causa do meu religioso comentario!
Obra do Belzebu sem rabo - concerteza.
Credo. Cruzes. Canhoto.

Sérgio Ribeiro disse...

Quem não tem rabo é o Mounti. O do Belzebu acaba em seta, dizem os teólogos (ah!, ah!).
E se soubessem como recuperei o anonimato... Quase me sinto engenheiro! E orgulhoso.
Mas voltemos às coisas sérias, a esta foto&legenda. Merece ser revista e relida.

Nuno Abreu disse...

não tem rabo ?!?!?!

Anónimo disse...

Cuidado Pedro que essa do NA traz agua no bico!

Sérgio Ribeiro disse...

Por favor, com o Mounti não se metam. Eu, seu advogado, ainda me zango e vos meto em justiça...
Defecar, defeca, embora seja de um asseio que faz inveja a algumas fotos provocadoras por que por aí tropeço.
A falta de rabo deste felino é forma popular de dizer que não tem cauda por ser, como é, descendente de lince. Uma fera... amorosa.
Respeitinho pelo rabo de cada um!

Nuno Abreu disse...

seria uma grande porcaria :)

Anónimo disse...

Falta de rabo não é rabeta?
Tu queres ver que o diabo do gato em vez de prepador é caçado?
Qualquer dia, ainda o vemos num acto solidario de minoria, tipo marcha; tipo manifestação a favor das uniões de facto!

Sérgio Ribeiro disse...

E esta, hem?
Ter que a andar p'ráqui a falar em nome do bicho. Não basta não me deixar dormir, fazer-se enxugar quando chove, pedir comida (e não ser nada "boa boca"), e etc- e tal, ainda tenho de falar em nome do bicho.
Pois o Mountolive, a quem foi feita uma operação - contra um masculino mas pouco viril parecer - para lhe moderar os instintos da natureza em estado puro, parece ter recuperado "aquela coisa" e que não deixa os seus créditos por gatos alheios.
Esclarecido? Se tiverem aí por casa alguma gatinha, não confiem no que o veterinário diz ter feito e cobrado...
Quanto à dita fotografia do senhor NA, visível em "olhares" logo à entrada (embora seja uma foto de saída...), pode aparecer por aí sem quem me perturbe o mínimo. Se fosse "cheiros" já não digo o mesmo...