2006-05-17

foto&legenda # 69

De manhã, quando acordavam, os habitantes daquele lugar encontravam as ruas limpas. Nunca esse facto os intrigou ou lhes suscitou curiosidade até que um dia
entre todos os dias, aconteceu ser naquele, igual a qualquer outro, mas diferente porque foi justamente nesse dia que
alguém anunciou ser isso um mistério e não natureza. É um mistério, mas não é um mistério qualquer. Minhas senhoras e meus senhores, é um mistério do arco da velha, declarou dom Lázaro, a maior das autoridades do lugar.
fosse ou não fosse um mistério do arco da velha e fosse ou não fosse a noite o arco da velha
Todos ou quase todos ficaram sobressaltados pela apresentação do caso nestes termos. Por isso, reunidas em conselho, decidiram as almas superiores dali que, por forma a abreviar a angústia do povo,
o povo, sempre o povo, o nosso povo, em nome do qual e para segurança do qual tudo se decreta foi decretado que
fosse investigado e dissipado tal mistério. Dom Lázaro, como lhe competia, anunciou publicamente essa decisão. De imediato surgiu uma dificuldade, encontrar quem se atrevesse a entrar na noite e a calcorrear as ruas como observador da causa do mistério. É que naquele lugar havia apenas dois tipos de gente acordada durante a noite. Havia os que amanhavam e coziam o pão, os padeiros. E havia o louco, Benevenuto, conhecido como filho da meia noite, que, entre outras loucuras, dizia haver pessoas que viviam acordadas sob o luar, pessoas que, porque dormiam durante o dia, os outros nem conheciam nem viam. Por motivos óbvios,
talvez os motivos não fossem óbvios, mas eram motivos e por isso
o louco não foi considerado alguém a quem pudesse ser confiada tão delicada missão. Quanto aos padeiros, embora acordados durante a noite, eles tinham que trabalhar, pois ninguém dispensava o pão fresco pela manhã. Aurora em que não houvesse pão quente para barrar com manteiga seria certamente má aurora. Aliás, nenhum habitante do lugar, do mais velho ao mais novo, alguma vez ouvira falar de acontecer uma manhã, diferente da manhã de domingo, em que não tivesse havido pão acabado de cozer.
para além disso, ainda que nocturnos, os padeiros eram acordados apenas entre paredes e sob telhado e jamais saíam à rua antes de o sol raiar
Perante estas contingências, os notáveis do lugar acabaram por convocar alguém credenciado, o detective. Nada de extraordinário demandaram a Constantino, assim se chamava o detective. O que lhe pediram foi que sob o período de luar aplicasse as mesmas técnicas e os mesmos métodos de investigação que aplicava quando o sol dourava e, assim, deslindasse o mistério, aquele mistério.
o quê ou quem, o que raio é que limpava as ruas durante a noite, se era o vento, se eram fantasmas, se eram animais, queriam saber os habitantes daquele lugar
Constantino, moço intrépido, acatou a missão. Nesse mesmo dia, depois de jantar, despediu-se da mãe, que evitou o pranto mas não a inquietude,
porque desde o crepúsculo, na casa de cada família, eram cerradas as portas e as janelas para evitar que a escuridão entrasse, julgando, quem se guardava assim, que desse modo se evitava a sua contaminação pelo obscurantismo
e saiu para as trevas nocturnas. Não precisou de muitas noites para fazer e dar por concluída a investigação. Na manhã do que seria o quarto dia de inquérito, Constantino regressou, encontrou-se com o colégio das autoridades do lugar e, comunicando resumidamente o relatório da investigação, disse-lhes quem limpa as nossas ruas são umas criaturas estranhas. Os outros quiseram saber mais pormenores, criaturas estranhas?, estranhas como? O detective respondeu-lhes por acto e por palavras. Por acto entregou uma série de polaroids e por palavras disse estranhas como nós. Depois, embora o dia já fosse claro,
as ruas estavam limpas
foi dormir.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

1 comentário:

Anónimo disse...

Magnifico história!
Uma homenagem aos trabalhadores nocturnos, que faz do cidadão (diurno) dias felizes!

Parabéns S.F.

GR