2006-03-18

foto&legenda # 11


A liberdade é o outro lado, disse Donatien. Mas, reagiu Leopold, às vezes é sobre o limite da liberdade, no limiar que separa e encontra este e o outro lado, que é bordada a vida. Donatien pensou durante um instante sobre o significado de tais palavras. Embora não concordasse com o seu interlocutor, procurou um ponto de intercessão com ele. Concorda comigo, então, num pormenor: a paisagem da liberdade é composta por dois lados, desafiou Donatien. Leopold, sim, concordo, anuiu. Mas, acrescentou de imediato, no entanto, a paisagem da liberdade não é composta apenas por esses dois lados. Para além dos lados, um e outro, há necessariamente o que os faz, há a linha que os aparta. E essa linha é ainda território possível de vida, de liberdade. Donatien tinha dificuldade em acompanhar o raciocínio do companheiro. Sabia pela sua prática que o fulgor dos livres lhe chegava quando se atrevia a ir para além do que estava estabelecido. A condição de solto sentia-a quando se livrava das convenções e calcorreava domínios que, aplacados pelos medos ou pelos modos, outros não ousavam pisar. Por isso, não consigo compreender o alcance da sua lucubração, insistiu Donatien. Para mim, a liberdade é depois dessa linha, porque antes é o cativeiro. O que significa que essa linha é como uma porta. Vista de cá é a saída para a liberdade, vista de lá é a entrada para o cativeiro. Daí que essa linha não seja, por não poder ser, chão de liberdade, mas seja uma zona de transição ou, se preferir, uma twilight zone. Fez-se um longo silêncio de desacordo entre ambos. Continuaram a andar, marcando Leopold a direcção, o sentido e o ritmo dos passos. Ao aproximarem-se do limite do campo, Donatien começou a sentir o apelo do outro lado. O sopro selvagem que residia nele havia despertado. Leopold logrou sustê-lo ali, embora caldeasse em Donatien uma vontade indómita de liberdade. Leopold disse, olhe, vê?, apontando para um pormenor da cerca que estava diante deles. Donatien confirmou, vejo. Ambos, detidos, olhavam um segmento do arame tenso que marcava o interior e o exterior daquele campo. Vê?, continuou Leopold, o mesmo detalhe que nos pode rasgar a carne, a farpa, é também o apoio para outros fios. Como a aranha fez, é possível trabalhar o limite - que é diferente de trabalhar sobre o limite -, utilizando-o para estender a liberdade. Na prática, ao trabalhar-se o limite, o que para alguns parecerá apenas submissão, é possível almofadar e, assim, anular o que é aguilhão e motivo de dor para o nosso corpo. Leopold tornou a apontar para o pormenor que observavam, como que a antecipar a confirmação das suas palavras, trabalhar o limite, no limite, torna possível tecer e suportar um edifício, uma vida. Donatien discordou, isso seria possível se fôssemos pequenos como um insecto, mas, como não somos, não é possível. Leopold tentou encontrar-se com o argumento do outro, falta-nos crescer, não é?, para conseguirmos ser mais pequenos, de um tamanho livre. Donatien não respondeu. Entretanto intensificara-se-lhe mais ainda o instinto e, súbito, saltou para o outro lado. Correu. Naquele momento Leopold ficou atónito. Depois, já recuperado da admiração, assentou de modo firme as mãos sobre o arame farpado, apertou-as para ali sentir-se seguro, e ficou a testemunhar a fuga de Donatien. Enquanto ele se afastava, Leopold começou a sentir as suas mãos a aquecer. O sangue escorria. Um vulto desvanecia-se no horizonte.
fotografia © Nuno Abreu
legenda © Sérgio Faria

4 comentários:

Ashikodi disse...

Vim parar a este blog através do link que está no blog do futsal da Juv. Ouriense e devo dizer que está altamente. Bem, digo isto tendo como referência o último post, este post. Continuem assim!

Sérgio Ribeiro disse...

Depois deste texto que outro texto escrever?, que frase, que palavra, que letra trazer à escrita, ?
Talvez... reler e reproduzir alguns trechos ("A condição de solto sentia-a quando se livrava das convenções e calcorreava domínios que, aplacados pelos medos ou pelos modos, outros não ousavam pisar.")
Talvez...
Por agora!

19/3/06 12:47

Anónimo disse...

à GR. os nomes das personagens foram aproveitados dos nomes desses desgraçados. apenas isso. as personagens só remotamente foram calibradas pelas personalidades dos tais desgraçados. faltou engenho. e paciência.

Sérgio Ribeiro disse...

Engenho... e arte. E arte!
O que lhe falta é paciência!