2006-03-12

LEGENDA&FOTO - 5

O Fabrício

Abri um estúdio de fotografia há pouco tempo. Fica num canto escondido, de frente para umas escadas, no interior do que, quase, se pode chamar um centro comercial em Ourém. É um sítio movimentado. Do outro lado das escadas está um supermercado que vai resistindo às investidas dos grandes grupos que por aqui ainda não cravaram o dente.
Depressa me acostumei à presença do Fabrício. Não consigo dizer a sua idade (mais de 20 e menos de 35). Geralmente tem o cabelo pintado de amarelo que o tempo e falta de água acabam por escurecer. Os olhos são ainda mais estranhos. Não é estrábico, mas um dos olhos está excessiva e teimosamente virado para o lado. Isso confunde as pessoas pois nunca se sabe para onde está a olhar.
O Fabrício não tem hora marcada. Sei sempre quando chega porque nunca pisa os últimos quatro degraus da escada. Gosta de saltar -lhes por cima e aterrar com grande estrondo em frente ao supermercado. Passa os dias sentado nas escadas com uma caixa que já não é de sapatos mas de esmolas, a mendigar o que lhe dão.
A voz chegou lá de fora: "Eu com a tua idade já trabalhava, e muito! Não és aleijadinho nem nada. Vai trabalhar!” – “Eu vou! Você dá-me trabalho? Faço o que quiser, limpo, despejo o lixo, varro, faço recados… eu quero é que me dêem trabalho!"
O outro, que não esperava a estocada, encaixou e calou. Mal sabia que Fabrício, para além de não ser aleijadinho, também era de resposta pronta e afiada. Hoje, sabendo o que sei, tenho a certeza que se lhe pedirem para varrer as escadas de um prédio de vinte andares por dois euros e meio, o Fabrício não hesita.
Noutra ocasião, uma Senhora, daquelas que engana o tempo com pinturas espampanantes, laca no cabelo e pouco ou nada que fazer, ainda experimentou, "… eu sei muito bem que o menino gasta o dinheiro que lhe dão em guloseimas e porcarias que só fazem mal." O Fabrício nem esperou pelo fim da frase e já contra-atacava "… comprei!... mas não foi com o dinheiro que tu me destes...", e ainda atirou "toma que já almoçastes!" O cabelo armado por dois litros de laca estremeceu e a senhora fez-se à vida.

O Fabrício tem duas paixões. A música debitada por dois auscultadores colados aos ouvidos e correr. Correr, correr, correr... O passo lembra os seus olhos. É desconcertado, mas firme. Corre todos os dias antes e depois de pegar ao trabalho de mendigador de escadas. Traz no bolso uma lista dobrada em quatro com as maratonas e todo o género de corridas que se vão realizar no corrente ano. Ano que, por ser feito de dias e horas, também passa a correr, às vezes depressa, outras com o peso de uma corrente enrolada ao pescoço. Mesmo assim, o Fabrício aguenta sereno, sentado, com a determinação de quem espera uma moeda que se adivinha melhor que a última.
Nestes dias de Natal, o tempo parece um sprinter carregado de doping nas veias. Corre que nem uma flecha, e o Fabrício em tom de confidência lá vai dizendo "Nunca vi uma coisa assim! As moedas já nem cabem no bolso!"
Então, fecho a porta, rio e atiro contente "assim é que é Fabrício! Aperta com eles." Subo as escadas, local de trabalho de um dos mendigadores de escadas mais velozes que conheço, e sigo em direcção a casa com pena de não ter a resposta pronta e afiada que tantas vezes me apetecia dar e não dou. "Toma que já almoçastes!"

Pedro

Um dia, pelo Natal, o Sérgio Ribeiro recebeu, por mail,
este texto do Pedro Gonçalves;
agora, devolveu-lho como proposta de legenda para uma foto:
“toma que já almoçaste!”

O Pedro Gonçalves depressa fez a fotografia para a legenda
(“toma que já almoçaste!”)

e aí está mais uma legenda&foto destes dois

6 comentários:

betinha disse...

Continuo a dizer, Parabéns! O texto está fantástico e a foto também.
Oh Pedro, não te sabia tão bom escritor! Parabéns

Tanita disse...

Óptima descrição! O Fabrício é mesmo assim! A foto não lhe fica atrás!
Reforço a afirmação da Betinha... Não sabia dos profundos dotes de escritor do Pedrito...

Anónimo disse...

Pedro,

Para além de boas fotografias, também escreves, assim?
A descrição está perfeita, um texto com tanta delicadeza!
Belíssimo texto!
Parabéns!

GR

Anónimo disse...

Realmente é pena... Já é pena existir pessoas assim, com dificuldades a vários níveis, e existir outro tipo de pessoas, que por não terem o mesmo tipo de dificuldades que as pessoas anterioemente mencionadas, as maltratam como se fossem cães de rua.
Lamento que assim seja...

Contudo, neste caso particular, temos um grande Fabrício, um Fabrício que cala aquele tipo de pessoas que o maltratam, ou que, por algum motivo, dizem coisas menos boas.

Já falei algumas vezes com ele, e participei nalgumas corridas com ele, apesar de termos corrido em diferentes escalões.
Uma coisa é certa: não é nenhum maluquínho (como muita gente o pensa), sabe o que diz (e a prova disso são as respostas dadas por ele, escritas no texto do Pedro) e é um corredor muito bom. Um grande fundista (corredor de grandes distânias), que deveria ser aproveitado.
No entando, ele instituíu o seu próprio clube, onde os frutos, só ele os poderá dizer.

Um abraço para o Fabrício, outro para o Pedro (pelo o texto e foto fantásticos) e um grande para o Sérgio,

Nuno Abreu disse...

execelente, Pedro!

Anónimo disse...

Fabrício, o corredor do cabelo amarelo.