E pensar. Pensar na vida. Ou não pensar. Não pensar na vida.
Apenas olhar! Para lado nenhum. Deixar-se ficar. Assim.
Até que o morrão do cigarro queime os dedos. Ou nem sentir o calor – ou o frio.
Até tudo ser só cinza, pó. Nada.

Não sei quantas, em número certo, mas foram muitas as vezes que enfrentei este meu vizinho, quase sempre com os seus braços jogados para trás, abertos. A última vez que lhe encontraram as mãos, como se fosse um cadáver, não foi apenas para conter a noite. Aconteceu-lhe isso, como pena longa, no mesmo dia em que abandonaram a casa que ele ainda guarda, junto com os degraus falseados pela erosão, armados em meio círculo, escondidos e esquecidos atrás das suas duas abas. Como outrora testemunhou dores e vigiou urgências passadas através de si, agora segura jogos e corpos de infância. Porque é de ferro, o corpo do meu vizinho resiste, soberano, preservando as suas solenidade e elegância graves. E, tão velho quão imponente, já memória e ainda presença, subsiste a bandeira da minha rua. Não porque, aqui, seja a maior portada sob o nome de Teófilo Braga, mas porque é o limiar que, franqueado, mais tempo cumpriu e defendeu qualquer dos frontispícios desta artéria.
Aqui, postos sob o silêncio, sentem-se dois murmúrios. Um, por que me queres?, ó memória, jogado pelo tiquetaque cardíaco deste lugar. O outro, quero-te para meu corpo, ó cidade, segredado pelas elipses contínuas do tempo. É este diálogo de vozes quase caladas que se repete e cruza com outro sussurro, a erosão lenta do fio tecido por Ariadne. O lugar vai afrouxando em mistério, vai sendo vencida a sua voz. Vão-se gastando e perdendo as palavras do seu nome. Os homens não se compadecem com isso e, por acto, confirmam o abandono da carne que se empresta à casa nossa de todos os dia. Por esse abandono, o lugar morre, sem amadurecer. As paredes falem. Há quem diga que é assim porque tem que ser, é o lugar a crescer, a cidade a sair das entranhas da vila, vila nova, como da crisálida, da ruína da ninfa, nasce a mariposa. Mas os homens mentem. Por isso tentam esconder o cadáver do lugar, embrulhando-o em futuro. Inventam cerimónias e orgulhos, exibem o seu estandarte, desfraldam-no ao vento, cantam hossanas, vésperas e esperanças, empinam o peito e olham o céu, pisam o seu chão, mas não vêem o que está diante de si, as insígnias do lugar a sangrar. A memória, pacho fraco, não estanca tal derrame. Fortuna é, sobre aqueles murmúrios já ditos, sentir-se ainda a sombra de um par de asas, majestosas. Sabe-se que não é um anjo que guarda este lugar, é uma águia. Águia que, sempre, abre as suas asas contra a queda, contra a traição, para, pelo seu bater, acordar as paredes que os homens já crêem e querem sem vida. Aos homens, aos senhores deste lugar, falta-lhes aprender a escrever a saudade nas coisas e guardá-las. É que, como a águia nos ensina pela sua vigilância, quando se voa, não se ressuscita das cinzas ou do nome que se deixou apagar. É assim no céu, é assim também no chão, neste lugar.
Money makes the world go (a)round. Ao longo dos anos muitas foram as vezes em que o Américo lhe rogou um cigarrito. Apesar da insistência, nunca teve sorte o Américo. Até que um dia alterou a moda, deixando de pedir um cigarrito para passar a pedir uma moedita. A sorte do Américo mudou. Agora, com frequência, o Américo acerca-se dele e sabe certo que, embora ele não fume, habitualmente transporta moedas no bolso. A última vez que o Américo lhe perguntou tens aí uma moedita?, hoje, ele deu-lhe duas moedas, uma de dois euros, outra de dez cêntimos. Com a moeda de dois euros o Américo comprou um bilhete de lotaria instantânea. Com a moeda de dez cêntimos raspou onde era para raspar. Percebendo que ganhara cinquenta euros, o Américo inverteu o ritual. Dispensou o sussurro de rogo, a proximidade também, e, em alta voz, à distância, perguntou, queres tomar alguma coisita?, hoje pago eu.
(foto de Pedro Gonçalves)
Fonte Grande, Formigais
À superfície todos os corpos são diferentes, com um desenho apenas seu, com uma pele exclusiva, não partilhável ou partilhável somente pelos sentidos, não pela comunhão. É sobre essa incomunidade dos corpos que se funda a singularidade - permita-se o pleonasmo, a singularidade de cada um de nós. Mas sob a superfície dos corpos percebe-se também um universo de invariáveis. Aí residem as mesmas fragilidades, os mesmos demónios, os mesmos sopros do mesmo sangue quente, os mesmos dispositivos animais. Os corpos, portanto, são também a cicatriz sob as suas tatuagens. Pelo que, em si, a variação que conhecem é a que lhes traz o vento. Enquanto corpos, é essa a sua única e derradeira unidade.
Há corpos que são apenas metáfora, porque são outros os corpos que lhe emprestam a forma. Daí a urgência de sofrer a sua geometria, de encontrar-lhe a raiz, de sentir-lhe a seiva, o plano, o fulgor. A memória não é suficiente para revelar o que uma forma é. A luz também não. Há, pois, que tocar essa forma quando concreta, cheia, tocá-la no modo que a desperta, ir para além do que é a sua superfície, ir para além do que é o seu volume. Há que tocar essa forma para recordar por onde, depois de guardado o segredo, se saiu. A natureza é mãe por esse toque, por esse encontro. O demais é apenas saída ou volta. E há-de ser húmus.


foto de Pedro Gonçalves

Logo o outro disse "'tá bem, sim senhor!" e acrescentou, como gosta de acrescentar, "é p'ra já!"
E aí está a legenda:
Enquanto
a mulher
Os olhos fechados deixam adivinhar ternura.
Os lábios desenhados, linhas suaves, sombra e luz.
Os braços cruzados sobre o corpo como carícia leve.
A mulher.
Só mulher.
Enquanto.
Esperando.
Vivendo ser mulher.
O fotógrafo foi, apenas, o que agarrou o momento,
o que conseguiu fixar o enquanto.
A ternura adivinhada,
as linhas suaves,
a sombra e a luz,
a carícia suave.
Tudo o que a máquina foi guardando.
O encanto.
Aquela mulher:
a mulher!
Boulevard nocturna. Sabe-se pouco sobre o caso. Sabe-se que, sem hora, sem sombra, sem exactidão, sem ritmo, saía de casa para caminhar demoradamente ao longo da avenida, sobre o extenso traço branco intermitente. Sabe-se que pisava aquele chão para confirmar-se ali, para fazer sobre ele o seu apoio e o seu movimento. Eram por hábito, quase ritual, os passos. Passos que eram também um exercício de reencontro e de abrigo, prova de vida. Muitas madrugadas, mais de mil, caminhou, indo e devolvendo-se por aquele caminho, carne da sua cidade. Até que uma noite, após tanto caminhar aquele caminho, aconteceu que a avenida tornou-se intensão do seu corpo e o seu corpo tornou-se extensão da avenida. O que era hábito transformou-se em culpa, rota de sangue, ser dali.
(foto de Pedro Gonçalves, depois de ter lida a "legenda" sugerida)